
O Atlântico Negro
Uma das mais importantes contribuições do livro de Paul Gilroy, O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência,[i] é insistir que a (de)formação da modernidade deve ser entendida em relação ao “Atlântico Negro”, um lugar internacionalizado e racializado. “Lugar”, quero sugerir, não é uma coordenada pré-definida, e sim um condensador espaço-temporal em permanente mutação, através do qual subjetividades são (re)produzidas e padrões de discriminação são constantemente definidos, assim como contestados. Enfatizando a internacionalidade do Atlântico Negro, Gilroy perturba e desestabiliza a unidade “nacional” e a maneira pela qual subjetividades são concebidas em termos de suas “raízes”; e move o foco, dessa forma, em direção a circulações, intercâmbios, fertilizações cruzadas, movimentos, rotas.[ii] Ademais, a atenção que esse movimento traz para processos de racialização conduz à problematização do modo pelo qual marcadores de discriminação estão imbricados na modernidade e são dela constitutivos – inclusive no que diz respeito a concepções modernas de cidadania, de estado e do próprio “internacional”.
“Discriminação”, tal como aqui se propõe, é uma prática heterogênea avançada por seres humanos em sua tentativa de se distinguir de não humanos, assim como daquilo que é identificado, de maneiras variadas, como natural, divino, bárbaro, primitivo.[iii] Embora o livro de Gilroy enfatize processos de racialização através do Atlântico Negro, é certamente o caso de que tais processos se conectam, de formas imbricadas e interseccionadas, com outros marcadores de discriminação, tais como classe, gênero, sexualidade, capacidade, religiosidade, entre outros.[iv]
Dessa perspectiva, o Atlântico torna insustentáveis as considerações ainda predominantes que tomam a modernidade como um resultado de práticas difusionistas que teriam começado na Europa e, então, englobado todo o mundo.[v] Assim, esse lugar, o Atlântico, se torna crucial para a interpretação de como a modernidade tem se formado e deformado através de rotas que não se conformam a concepções lineares da história; ou a noções de subjetividades e de poder que sejam circunscritas ao nacional ou que sejam universalizantes. A (de)formação da modernidade é inseparável da dinâmica de intersecção e imbricação de múltiplos marcadores de discriminação.
O Atlântico Vermelho

Eu me deparei recentemente com a noção de Atlântico Vermelho, que dá nome a um dos projetos da artista visual, pesquisadora e educadora Rosana Paulino. De acordo com ela,trata-se de um lugar cujas rotas têm sido traçadas por múltiplos marcadores de discriminação, avançados pela ciência (mesmo antes do racismo científico do século XIX), assim como pela religião, e que conectam transversalmente a política, a economia, a história, a cultura. O projeto interage com Gilroy (e outras/os), porém destaca como o sangue é uma parte fundamental das histórias atlânticas. Além disso, ela aporta à sua obra como um todo a centralidade da cultura afro-brasileira, salientando questões de raça e gênero por uma perspectiva diaspórica, o que contribui para a abordagem daquilo que o próprio Gilroy identificou como sendo a marginalização da história brasileira nas considerações sobre a política negra na América do Norte e no Caribe.[vi]
De maneira suplementar, eu gostaria de sugerir que a potencialidade da expressão Atlântico Vermelho reside, ainda, no fato de ser mais adequada às intersecções e imbricações dos marcadores de discriminação mencionados anteriormente. O Atlântico Vermelho, seguindo essa proposição, abarca o Atlântico Negro, mas também o Atlântico Indígena, o Atlântico das(os) Trabalhadoras(es), em suma, o Atlântico das maneiras heterogêneas pelas quais os processos de subalternização têm se combinado, mas também têm sido contestados. Em outras palavras, como diferentes modos de coexistência têm sido negociados, disputados, resistidos, subvertidos, defendidos e combatidos. Se, de um lado, o sangue for derramado em genocídios e em outras modalidades de violência através do Atlântico, por outro lado, ele tem conferido vida a variadas modalidades de contestação por parte de subjetividades subalternizadas que traçaram e vêm traçando as múltiplas rotas do Atlântico Vermelho, navegando com e contra as imbricações e intersecções de gênero, classe, raça-etnicidade, capacidade, sexualidade, religiosidade…
Traçando Rotas no Atlântico Vermelho
Para concluir esta intervenção, eu gostaria de indicar uma das rotas do Atlântico Vermelho que podem ser mapeadas em certas contribuições das tradições de pensamento brasileiras. Inspirado em Lélia Gonzalez, denomino-a como Rota Amefricana. “Améfrica”, de acordo com Lélia, combina referências negras passadas e contemporâneas com referências africanas e americanas (incluindo as ameríndias).[vii] “Amefricanidade” é uma categorização que almeja lançar luz sobre a dimensão diaspórica e internacionalizada das articulações históricas, em constante mutação, tanto dos marcadores de discriminação constitutivos da modernidade, quanto de suas várias reinterpretações e/ou ressignificações através do que Paulino nomeou como Atlântico Vermelho. A proposição de Gonzalez faz parte das formas pelas quais pensadoras(es) negras(os) brasileiras(os) têm reinterpretado as experiências históricas dos quilombos como algo permanente, mas não cristalizado, através da (de)formação do Brasil e da modernidade.
Desde os anos 1970, o quilombismo tem sido cada vez mais entendido como a forma de um ideal em constante rearticulação e que agrega múltiplos atos de contestação antirracista.[viii] Esse conceito afro-brasileiro integra uma rota amefricana pelo Atlântico Vermelho que tem sido construída por práticas que visam a “uma única afirmação humana, étnica e cultural, a um tempo integrando uma prática de libertação e assumindo o comando da própria história”.[ix] Ele desestabiliza a unidade nacional e as concepções universalistas da história a partir de uma perspectiva afrodiaspórica que pode ser lida nos termos do que Robbie Shilliam propôs como “ciência decolonial”, na medida em que ele busca “curar feridas coloniais, religando povos, terras, passados, ancestrais e espíritos”.[x]
É importante ter em mente também que o quilombismo, enquanto força de um ideal que liga atos passados e contemporâneos, permite compreender as variadas maneiras pelas quais povos negros, indígenas e brancos pobres levaram adiante modos de coexistência que desafiaram, e continuam a fazê-lo, os marcadores de discriminação constitutivos da modernidade. Portanto, o quilombismo é uma das rotas amefricanas que conectam a (de)formação do Brasil ao Atlântico Vermelho e aos múltiplos atos de discriminação e contestação que nele têm emergido ao longo da história.
Quando Walter Benjamin, em conhecido texto, afirmou que “nunca há um documento de civilização que não seja ao mesmo tempo um documento de barbárie”[xi], e que a barbárie permeia igualmente o modo como esse documento é transmitido através da tradição, ele também colocou como tarefa “escovar a história a contrapelo”.[xii] Por um lado, o Atlântico Vermelho tem sido um dos lugares onde a própria noção de “barbárie” tem sido (re)produzida em conexão com as noções de classe, gênero, raça-etnicidade, capacidade, sexualidade, religiosidade… Por outro lado, nele também rotas contestatórias têm sido traçadas pelas mesmas subjetividades que, consideradas “bárbaras” por um certo mapeamento, estão escovando a história a contrapelo, ensejando mapas – e mundos – de libertação.
[i] Paul Gilroy, The Black Atlantic: Modernity and Double Consciousness (Londres e Nova York: Verso, 1993).
[ii] Isso também foi observado por Stuart Hall, em The Fateful Triangle: Race, Ethnicity, Nation (Cambridge e Massachusetts: Harvard University Press, 2017), p.159-160.
[iii] Sigo aqui a definição de “discriminação” proposta por R. B. J. Walker, After the Globe, Before the World (Nova York: Routledge, 2010), p.97.
[iv] Para a relação entre intersecção e imbricação, sugiro o texto de Andrea Gill e Thula Pires, “From Binary to Intersectional to Imbricated Approaches: Gender in a Decolonial and Diasporic Perspective”, Contexto Internacional, vol.41, no. 2, p.275-302, maio/agosto de 2019. Além dele, vale mencionar, claro, a valiosa tradição do feminismo negro que vem se dedicando ao conceito de “interseccionalidade”.
[v] Robbie Shilliam, “The Atlantic as a Vector of Uneven and Combined Development”, Cambridge Review of International Affairs, v. 22, no. 1, p.69-88, 2009, p.72. Ver, ainda: Alexander Anievas e Kerem Nisancioglu, How the West Came to Rule: The Geopolitical Origins of Capitalism (London: Pluto Press, 2015), cap.5; e Onofre dos Santos Filho, “Ultra Aequinoxialem Non Peccari: Anarquia, Estado de Natureza e a Construção da Ordem Político-Espacial”, Monções: Revista de Relações Internacionais da UFGD, Dossiê Teoria das Relações Internacionais no Brasil, organizado por João Nackle Urt, Lara Selis e Victor Coutinho Lage, vol. 8, n. 15, p. 486-518, 2019.
[vi] Paul Gilroy, O Atlântico Negro: Modernidade e Dupla Consciência (São Paulo: Editora 34, 2001). Abordar essa marginalização também é o que motiva trabalhos recentes como os de Petrônio Domingues e Kim D. Butler, reunidos em Diáspora Imaginadas: Atlântico Negro e Histórias Afro-Brasileiras (São Paulo: Perspectiva, 2020).
[vii] Lélia Gonzalez, “A categoria político-cultural de amefricanidade”, Tempo Brasileiro, n. 92-93, p. 69-82, 1988, p. 77. Para duas coletâneas recentes dos trabalhos de Lélia, ver Gonzalez, Primavera para as Rosas Negras (São Paulo: UCPA Editora, 2018) e idem, Por um Feminismo Afro-latino-americano (São Paulo: Companhia das Letras, 2020).
[viii] Ver Abdias do Nascimento, O Quilombismo: Documentos de Uma Militância Pan-Africanista. 2.ed (Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2002). Ver também Abdias do Nascimento, “Quilombismo: An Afro-Brazilian Political Alternative”, Journal of Black Studies, vol.1, no.2, p.141-178, 1980. Beatriz Nascimento insistiu igualmente, desde os anos 1970, no “quilombo” como um conceito ligando contestações passadas e contemporâneas. “Eu sou atlântica”, disse Beatriz. Ver Maria Beatriz Nascimento, Beatriz Nascimento, Quilombola e Intelectual: possibilidade nos dias de destruição (Diáspora Africana: Editora Filhos da África, 2018), 326. Recentemente, alguns de seus textos foram traduzidos para o inglês; ver Christen Smith, Archie Davies e Bethânia Gomes, “’In front of the world’: translating Beatriz Nascimento”, Antipode, vol.53, no.1, p. 279-316, 2021.
[ix] Abdias do Nascimento, Ibidem, p.265.
[x] Robbie Shilliam, The Black Pacific: anti-colonial struggles and oceanic connections. (London: Bloomsbury, 2015), p.13.
[xi] Walter Benjamin, “Über den Begriff der Geschichte”, in Gesammelte Schriften, Band I (Frankfurt am Maim: Suhrkamp, 1991), p.696.
[xii] Ibidem, p.697.
* Esta série foi originalmente publicada em inglês, no blog Strife, do Departamento de War Studies da King’s College. Ver: https://www.strifeblog.org/2021/07/05/series-on-memory-history-and-power-introduction/
Victor Coutinho Lage é Professor do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos da Universidade Federal da Bahia (IHAC/UFBA) e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da UFBA.