
No conto Funes, o Memorioso[i], Jorge Luis Borges narra a história de um personagem chamado Ireneo Funes, que, após sofrer uma queda brusca ao montar um cavalo, bate a cabeça e, como consequência, começa a se lembrar de absolutamente tudo. O que parecia, em um primeiro momento, uma dádiva, logo se torna uma maldição: incapaz de fazer conexões mais abstratas de pensamento, o mundo se torna intolerável para Funes. Do título, podemos compreender que o ensaio do Borges é uma parábola sobre a função da (des)memória. “Fala-se tanto em memória porque ela não existe mais”, lembra o pensador francês Pierre Nora.[ii] Assim, memória não é tanto sobre a habilidade de memorizar tudo, o que leva à triste sina de Funes, mas sim um reconhecimento de que tudo ao nosso redor está fadado ao esquecimento.
Do ensaio do Borges, entendemos, então, que lembrar não é um acúmulo de registro de eventos e sensações. Funes absorvia cada detalhe, lembrança e informação, mas era desprovido da capacidade de criar conexões mais profundas entre as coisas – desprovido da capacidade de imaginar. Por isso, o registro excessivo das coisas se torna uma maldição insustentável. Vemos, então, que a memória demanda um certo grau de abstração. Demanda que o esquecimento seja também seu aliado, pois nunca podemos recuperar as coisas como aconteceram exatamente. Nesse sentido, compreende-se que a memória é um tecido fino que necessita da atividade constante de recordar. Memória é, assim, um ato ativo de escavar o que já se é perdido e, a partir daí, criar estratégias para não esquecer.
Neste texto, eu gostaria de comparar a memória com o ato da costura: em um exercício delicado de paciência, costuramos os fios, observando sua fragilidade, até que eles se tornem um tecido mais robusto. Aqui, podemos comparar como rememorar se assemelha às formas em que a agulha conecta fios. Assim como a agulha almeja costurar e conectar tecidos, criando uma peça comum, a memória também cria uma rede comum de elementos – reunidos em uma assemblage. Desse modo, a memória provê um sentido ao mundo, ou, em outras palavras, propicia uma estrutura sensível a partir do qual passamos a entender quem somos entre o passado e o futuro.
Tomo a liberdade de comparar também o ato da costura evocando algumas práticas provenientes de religiões afro-brasileiras, como, em particular, o Candomblé. Em algumas dessas tradições culturais e religiosas, indivíduos carregam consigo uma pequena peça delicada de costura, chamadas de patuás. Algumas delas podem conter ervas e especiarias e, outras, fotos de familiares. Independentemente da forma, esses pequenos tecidos costurados são carregados em carteiras ou bolsas e têm um caráter de amuleto. Isto é, proveem boa fortuna e proteção àqueles que os carregam.
A artista brasileira Rosana Paulino recorre a algumas dessas referidas práticas do Candomblé como elementos de reflexão importante para discutir a história brasileira, enfatizando os fios invisíveis da colonização que ainda persistem na realidade presente. Na obra “Parede da Memória” (1994), Paulino nos apresenta a 1.500 patuás, cuidadosamente costurados, dispostos em uma parede extensa, em que cada uma das peças possui uma foto de uma pessoa ou família de origem negra.
A obra da Paulino se revela uma pesquisa da artista em relação à sua própria história, que é, por sua vez, inserida na difícil relação do Brasil com seu passado. Paulino realiza uma denúncia sobre a ausência da população negra no imaginário coletivo da construção do país, ainda que a maior parte da população brasileira tenha origens relacionadas à diáspora negra. Como Paulino delicadamente demonstra com sua poética, a população negra é limitada a um lugar marginal na esfera pública – o que é sintomático quando se pensa nas muitas formas de opressão e violência às quais pessoais de origem negra são submetidas todos os dias pelas políticas estatais. A poética da artista ilumina as subjetividades marginalizadas na comunidade política. Ao pesquisar sua própria identidade, Paulino recorre à história coletiva para entender sua marginalidade como mulher negra em seu país de origem e de residência.
Como espectadores de sua obra, tomamos conhecimento daquelas representações que, na verdade, são invisíveis no tecido político-social do Brasil. Trata-se de uma tentativa da artista de recorrer à proposta das artes visuais como exercício de olhar para aqueles muitas vezes ignorados no contexto brasileiro, interrompendo, então, as perpetuadas exclusões coloniais da esfera política. Paulino costurou literalmente cada um dos patuás, bordados com fotos de onze famílias desconhecidas, mas que poderiam ser uma de suas ancestrais, como ela argumenta. A questão aqui é que a ação de conectar fios permite à artista preencher algumas lacunas do presente, revelando narrativas e iluminando histórias e subjetividades ocultas. Dessa forma, Paulino usa sua experiência vivida, como alguém de origem negra, para costurar metaforicamente uma memória coletiva, já que ela pertence a um contexto mais amplo da dinâmica política de onde ela fala. Com isso, estou me referindo à experiência negra que ainda desvela como a sociedade brasileira lida com seu passado violento. Com seu trabalho, Paulino levanta uma reflexão sobre racismo, colonialismo e história. Como espectadores, não temos opção a não ser pensar sobre essas questões sensíveis ao lidar com nosso passado e presente, especialmente como brasileiros.
Ainda que a história brasileira seja marcada por violência e exclusão da população negra, Paulino se volta justamente aos seus antepassados para protegê-la no tempo presente. Os patuás são uma metáfora de seu compromisso com as suas origens, que a atravessam no tempo presente da experiência vivida. Nesse sentido, uma historiografia linear tradicional, na qual passado e futuro são marcos tempos de uma sucessão de eventos, não é suficiente para dar conta da complexidade dessa experiência[iii]. Na verdade, lidar com o passado implica observar memórias coletivas, pois há inúmeras formas de olhar o tempo que já passou e, assim, o passado se torna uma espécie de promessa de algo a ser revelado – uma redenção, em termos benjaminianos. Walter Benjamin desenvolve o conceito de redenção como um momento de despertar, em que se pode compreender outras perspectivas ao olhar para a própria origem/história. Despertar tem o sentido aqui de se dar conta de que há aqueles que foram apagados na narrativa dos grandes eventos históricos. Para ele, a história é uma constelação, que opera como um “telescópio em que o passado atravessa o presente”[iv], de forma que “o passado coloca o presente em uma condição crítica”[v]. Em suas palavras, Benjamin argumenta que “não é que o passado ilumina o presente, ou que o presente lança luz ao passado”[vi], mas sim que o passado perdura no tempo presente.
Nesse sentido, o presente é uma constelação complexa, formada por uma assemblage de diferentes abordagens ao(s) passado(s), e é por este motivo que o presente se desvela em fragmentos e incertezas[vii]. O que é tão marcante e promissor no projeto filosófico de Benjamin é a consequência dessa(s) história(s) fragmentada(s): é precisamente essa disputa em relação a diferentes apropriações do passado, suas incertezas, que cria uma fissura que pode tornar o sujeito consciente de sua própria imersão na história coletiva. Com Benjamin, nos damos conta de que a narrativa linear da história contém em si, na verdade, as vítimas desconhecidas do progresso e da modernização. Como ele afirma, “não há documento de civilização que não seja ao mesmo tempo um documento de barbárie”[viii]. Uma vez que se percebe essa constelação, rompe-se com a ordem “natural” das coisas, isto é, a versão única da “História”. É precisamente a isto que Benjamin dá o nome de redenção: o despertar, como momento de revelação, do processo dialético que configura o presente.[ix] Assim, ao olhar para a obra de Paulino, percebe-se que esses rostos permeiam uma história oculta e conturbada da modernização e colonização brasileira. Portanto, como afirma Benjamin, “articular o passado historicamente não significa reconhecê-lo “do jeito que realmente era”. Significa, ao contrário, apropriar-se de uma memória (Erinnerung) que surge em um momento de perigo.[x] Contra o legado do esquecimento, os patuás da Paulino são um tesouro perdido de proteção, nos revelando que a memória exige atos de costurar fios que nos conectam uns com os outros.[xi] Eis o motivo pelo qual a memória é uma matéria fina, pois sempre estamos à beira de perder o fio. Mesmo assim, costurar é tudo que nos resta para não esquecer.
[i] Jorge Luís Borges. Funes el memorioso. Obras completas. Buenos Aires: Emecé, 2007, p. 583–590.
[ii] Pierre Nora. Les Lieux de Mémoire. Paris: Gallimard, 1984, p.7.
[iii] Nora, Les Lieux de Mémoire, p. 43.
[iv] Walter Benjamin. The Arcades Project. Editado por Rolf Tiedemann. Cambridge, MA: Belknap Press of Harvard University Press, 2002, p. 741 – tradução nossa.
[v] Susan Buck-Morss. The Dialectics of Seeing: Walter Benjamin and the Arcades Project. Cambridge, MA: The MIT Press, 1989, p. 338 – tradução nossa.
[vi] Benjamin, The Arcades Project, p. 462 – tradução nossa.
[vii] Vivienne Jabri. The Postcolonial Subject. New York: Routledge, 2014, p. 15.
[viii] Walter Benjamin. Selected Writings, v. 4 – 1938-1940. Traduzido por Edmund Jephcott et al. Editado por Howard Eiland & Michael W. Jennings. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2010.
[ix] George Didi-Huberman. Images in Spite All: four photographs from Auschwitz. Chicago, US: University of Chicago Press, 2008.
[x] Benjamin. Selected Writings, v. 4 – 1938-1940. p. 391 – tradução nossa.
[xi] Jeanne-Marie Gagnebin. História e Narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 92.
* Esta série foi originalmente publicada em inglês, no blog Strife, do Departamento de War Studies da King’s College. Ver: https://www.strifeblog.org/2021/07/05/series-on-memory-history-and-power-introduction/
Mariana Caldas é Doutoranda na PUC-Rio, Brasil. Sua pesquisa discute o conceito de violência no campo dos Estudos Críticos de Segurança, por meio de uma discussão com uma literatura de estética, para problematizar a experiência vivida do sofrimento representada em obras de arte, particularmente discutindo com arte brasileira. Twitter: @mariana_caldas_