Ao menos desde 1925, o Uruguai oficialmente proclama ser um país em cujo território não habitam indígenas. Em um livro comemorativo antigo, escrito para celebrar o centésimo aniversário do país, lê-se que o Uruguai “é a única nação da América que pode fazer a reivindicação categórica de não ter nenhuma comunidade que se assemelhe à sua população aborígene dentro de seu território”, e que “faz[ia] quase um século que a terra uruguaia ficara sob absoluta posse da raça europeia e de seus descendentes”[i]. A referência implícita à extinção indígena remete a um conjunto infame de incursões planejadas e comandadas pela presidência de Fructuoso Rivera, entre 1831 e 1834, com o objetivo explícito de “limpar o campo”, livrando-o da “horda selvagem de Charrúas”[ii] que lá habitava. Buscava-se, à época, atender a antigas e recorrentes requisições feitas por latifundiários organizados[iii]. Atualmente, o Uruguai é um dos poucos países latino-americanos que carecem de dispositivos legais que atendam à questão indígena. Como? Por quê? Um olhar atento às formações histórias da nação dá algumas pistas.

Já no final da década de 1870, nenhum pedaço de terra uruguaia permanecia sem ter sua propriedade virtualmente reivindicada. Políticas nacionais modernizantes estimularam o cercamento de grandes estâncias de criação de gado, consolidando-as como modelo dominante de acumulação de capital e dividindo as paisagens do campo em um diagrama de ângulos predominantemente retos[iv]. Esse fenômeno se desenvolveu em concomitância a logros tardios do Estado, que finalmente passava a dispor de algum grau de estabilidade e de autonomia político-territoriais, garantidas por um (ainda vacilante) aparato repressivo nacional independente. A consolidação da soberania e a formação de um modelo republicano de cidadania requeriam, porém, mais do que a territorialização efetiva do monopólio da violência. Impunha-se a necessidade de criar histórias e mitos modernos, capazes de garantir a legitimidade simbólica da ainda incipiente comunidade política uruguaia, cujas fundações materiais se erigiram sobre etnocídios coordenados e no amplo cercamento/expropriação de terras. Comumente referida como uma colonização tardia, as ações empreendidas tanto pelos impérios ibéricos quanto pelas elites nacionais no que atualmente é o Uruguai se valeram menos de uma exploração massiva de mão-de-obra nativa (como foi o caso em áreas densamente povoadas, a exemplo da América Central e dos Andes) do que do seu deslocamento e extermínio. O objetivo foi abrir campo para a ocupação europeia/branca, que se intensificou a partir de massivas ondas migratórias iniciadas no final do século XIX. Argumenta-se, portanto, que o caso uruguaio se qualifica como um colonialismo de colonos (settler-colonialism).

De forma similar a outros Estados-nação americanos, discursos e imagens de povos nativos cumpriram um papel central na construção da nacionalidade pós-colonial uruguaia. Os Charrúa, uma vez considerados a maior ameaça aos fazendeiros locais, foram romanticamente remodelados como “índios nacionais”[v]. Por meio de uma reavaliação positiva de sua bravura primitiva e indômita, enquadrada em contornos proto-nacionais, foi dito que os Charrúa “seguravam o destino dos uruguaios em suas mãos”[vi]. A ironia cruel desse discurso é que o que os permitiu passar de inimigos diretos a repositórios culturais da nação é uma ideologia de descontinuidade temporal – uma que só permite localizar indígenas (nacionais) autênticos num passado remoto e totalmente superado. Enquanto artistas e escritores uruguaios proeminentes como Eduardo Acevedo Díaz, Francisco Bauzá e Juan Zorilla de San Martín mitologizaram os passados indígenas, vários arqueólogos e historiadores de inspiração nacionalista os biologizaram. Divorciadas da modernidade, histórias de descendentes foram invisibilizadas, negligenciando-se a persistência social indígena no país.

Fig. 1 – Monumento a El Entrevero, 2011 | Fotografia de Andrés Franchi via Wiki Commons

A prevalência dessa construção discursiva é observável em pontos distintos do país. É o caso do imponente Monumento a El Entrevero, esculpido por José Belloni e inaugurado em 1967 na Praça Fabini, localizado em área nobre de Montevidéu. Representando um cenário de “guerra total”, no qual não é possível distinguir lados, ele oficialmente representa “a evocação das primeiras batalhas da pátria-mãe, por índios e gaúchos”. O tributo a um antigo estado de natureza do tipo hobbesiano legitima o estabelecimento do Estado Uruguaio como uma necessidade histórica para um território “incontrolável” – uma teleologia que tanto só é possível quanto é uma consequência direta da extinção de “seus” habitantes nativos. O único sujeito indígena que se encaixa nessa história, como fica evidente no monumento, é um sujeito macho, puramente conflituoso e fadado à morte, posto que o cânone nacional não é capaz de acomodar qualquer hibridismo ou mestiçagem entre o cidadão branco/europeu e o nativo, cuja extinção é uma condição sine qua non do nascimento da nação. Uma lógica similar é encontrada no famoso e infame Monumento a los Ultimos Charrúas, esculpido por Edmundo Prati, Gervasio Muñoz e Enrique Lussich, inaugurado em 1938 no parque do Prado, também em Montevidéu. Nele, celebra-se a abominável jornada de quatro nativos aprisionados pelo Estado, que foram levados a Paris para serem publicamente expostos como os “últimos Charrúas” (autênticos), em 1834.

Fig. 2 – Monumento a los Últimos Charrúas, 2013 | Fotografia de Eva Jade via Wiki Commons

Outros espaços onde essa ruptura temporal-racial é notadamente simbolizada são museus. Exposições relacionadas à temática indígena raramente compartilham os mesmos espaços e salas com aquelas que celebram as instituições da república ou suas figuras ilustres. Apesar de descobertas arqueológicas recentes estarem desafiando frontalmente a suposta ocupação “proto-nacional” dos Charrúa na região – a qual, na verdade, foi palco de complexas relações interétnicas[vii] –, a maioria dos museus nacionais carece de exposições sobre as diferentes formas em que histórias indígenas se entrelaçam e se confundem com a formação do Estado uruguaio[viii] e de sua sociedade contemporânea. Uma passagem de artigo exposta no Museo Indígena de Colonia del Sacramento explicitamente menciona que “[Os índios] não tiveram qualquer influência na cultura geral do país”[ix].

A nacionalidade uruguaia partilha uma relação ambígua com sujeitos indígenas: por um lado, ela se erige sobre sua suposta extinção; por outro, sua legitimidade enquanto uma nação americana se deve à herança simbólica pré-histórica dos “seus” nativos. Assim sendo, o quão ameaçadores aos pilares europeus/brancos dessa nação podem ser grupos contemporâneos que reivindiquem uma identidade indígena? Seria um novo paradigma de cidadania nacional capaz de integrá-los? Essas são, talvez, as perguntas mais importantes que alguém deve fazer ao tomar ciência das crescentes reivindicações feitas por descendentes de Charrúa e de outros povos indígenas organizados na região do Rio da Prata, as quais estão coletivamente (e transnacionalmente) reconstruindo e vocalizando memórias silenciadas[x]. Caso seja seguida a tendência continental, pode-se ter certeza de que disputas sobre monumentos, museus e sítios de interesse patrimonial indicarão possíveis respostas. ** Essa última afirmação se provou tão verdadeira que, após o envio da versão original desse texto, em inglês, iniciou-se um importante processo por dentro do Estado uruguaio. Sob os auspícios da lei 19.641/2018, que objetiva recordar e reconhecer lugares onde vítimas de terrorismo e ações ilegítimas do Estado tiveram seus direitos humanos violados, diversas organizações Charrúa, em conjunto, estão requerendo que a região de Salsipuedes – palco dos massacres fundacionais do Estado contra seus ancestrais – seja reconhecida oficialmente como lugar de memória. A matéria está em avaliação pela comissão responsável, e pode ser a ponta de lança de uma nova dinâmica no relacionamento entre indígenas e o Estado uruguaio.

Pós-escrito: Essa última afirmação se provou tão verdadeira que, após o envio da versão original desse texto, em inglês, iniciou-se um importante processo por dentro do Estado uruguaio. Sob os auspícios da lei 19.641/2018, que objetiva recordar e reconhecer lugares onde vítimas de terrorismo e ações ilegítimas do Estado tiveram seus direitos humanos violados, diversas organizações Charrúa, em conjunto, estão requerendo que a região de Salsipuedes – palco dos massacres fundacionais do Estado contra seus ancestrais – seja reconhecida oficialmente como lugar de memória. A matéria está em avaliação pela comissão responsável, e pode ser a ponta de lança de uma nova dinâmica no relacionamento entre indígenas e o Estado uruguaio.


[i] Perfecto López Campaña, El Libro del Centenario (Montevideo: Agencia de Publicidad Capurro, 1925), p. 43.

[ii] Quart.l General Salsipuedes, Abril 15 de 1831, em Eduardo Acosta y Lara, La Guerra de los Charrúas, período patrio (Montevideo: Linardi y Risso, 1989), v. II.

[iii] Adriana Dávila e Andrés Azpiroz, Indios, cautivos y renegados en la frontera: los blandengues y la fundación de Belén, 1800-1801 (Montevideo: Ediciones Cruz del Sur, 2015); Acosta y Lara, La Guerra.

[iv] José Pedro Barrán e Benjamin Naum, Historia rural del Uruguay moderno, vol. 1, 1851-1885 (Montevideo: Editora Banda Oriental, 1967); Samuel Brandt, The Makings of Marginality: Land use intensification and the diffusion of rural poverty in eighteenth and nineteenth century Uruguay, (M.A. Thesis, University of California, 2019). Estima-se que dezenas de milhares de trabalhos de pastoreamento e de controle do gado, que são comumente associados à figura do gaúcho, tornaram-se obsoletos com o advento dos cercamentos rurais. A esse fenômeno estão relacionadas largas ondas de deslocamento populacional, bem como a inspiração para produções artísticas regionais, como a payada.

[v] Gustavo Verdesio, “La mudable suerte del amerindio en el imaginario uruguayo: su lugar en las narrativas de la nación de los siglos XIX y XX y su relación con los saberes expertos,” Araucaria, n. 14 (2005): 161-195; Jeffrey Erbig Jr. e Sergio Latini, “Across Archival Limits: Colonial Records, Changing Ethnonyms, and Geographies of Knowledge,” Ethnohistory 66, n. 2 (2019): 249-273; Carolina Laurino, La construcción de la identidad uruguaya (Montevideo: Universidad Católica, 2001).

[vi] Francisco Bauzá, Historia de la dominación española en el Uruguay 96, Tomo II (Biblioteca Artigas, colección Clásicos Uruguayos, 1965[1895]), p. 145.

[vii] Diego Bracco, “Los guenoa minuanos misioneros,” Memória Americana, cuadernos de etnohistória 24, no. 1 (2016): 33-54; Sergio Latini, “Repensando la construcción de la Cuenca del Plata como espacio de frontera” em Fronteras, espacios de integración en las tierras bajas del sur de América, ed. Carina Lucaioli e Lidia Nacuzzi (Buenos Aires: Sociedad Argentina de Antropología, 2010): 69-99; Norberto Levinton, “Guaraníes y Charrúas: una frontera inclusivista-exclusivista,” Revista de História Regional 14, n. 1 (2009): 49-75.

[viii] Sobre isso, ver Jeffrey Erbig Jr, Where Caciques and Mapmakers Met (Chapel Hill: The University of South Carolina Press, 2020).

[ix] Essa frase é de autoria de um dos mais notáveis antropólogos uruguaios, Renzo Pi Hugarte, dita numa entrevista a um jornal. Posto que só algumas partes selecionadas estão expostas no museu, é impossível fazer uma referência específica.

[x] Andrea Olivera, Devenir Charrúa en el Uruguay: Una etnografía junto con colectivos urbanos (Montevideo: Lucida Ediciones, 2016); Mariela Eva Rodríguez e Mónica Michelena, “Memorias Charrúas en Uruguay: reflexiones sobre reemergencia indígena desde una investigación colaborativa,” Abya Yala 2, n. 2 (2018): 181-210.

* Esta série foi originalmente publicada em inglês, no blog Strife, do Departamento de War Studies da King’s College. Ver: https://www.strifeblog.org/2021/07/05/series-on-memory-history-and-power-introduction/


Henrique Gasperin é Mestre em Relações Internacionais pela PUC-Rio. Interessado em políticas de memória, comunidades tradicionais e movimentos sociais na América Latina.