Da descida do monte Trebavić, é possível ter uma vista privilegiada de Sarajevo. Para chegar lá, é preciso apenas uma caminhada de 20 minutos partindo de Grbavica, um bairro residencial popular construído durante a Iugoslávia socialista. Apesar de curta, a subida é literalmente de tirar o fôlego: a poluição do ar atinge níveis preocupantes durante o inverno, a estrada não é adequadamente asfaltada para proteger os pedestres de carros em alta velocidade e, ao chegarmos, somos surpreendidos com uma vista panorâmica de toda a capital da Bósnia e Herzegovina. Por esse motivo, não é difícil compreender por que o nome original desse local é Vratca – “pequena porta”. Afinal, a vista do local para Sarajevo nos dá a impressão de que estamos diante de uma porta para a cidade.

Devido à sua localização estratégica, Vraca foi cobiçado por diferentes grupos ao longo dos séculos. A cada ocupação, o local foi apropriado de acordo com o papel atribuído a Sarajevo. Se durante o Império Austro-Húngaro, Vraca foi ocupado em 1898 como um forte militar, durante a II Guerra Mundial foi transformado em campos de morte e valas comuns, onde Ustaše[i] executaram milhares – em sua maioria, judeus, sérvios, comunistas e partisãos. Além disso, sua posição como “porta para a cidade” tornou possível sua apropriação como hub de deportação, ponto de onde prisioneiros eram levados a campos de concentração situados nas proximidades. No total, ao menos 12.000 habitantes de Sarajevo foram mortos por forças fascistas. Seus nomes foram cravados no monumento construído quase quatro décadas depois, nesse mesmo local.
O Parque Memorial Vraca foi concebido por veteranos de guerra e autoridades de Sarajevo em 1965. Nesse período, outros monumentos e memoriais foram construídos para celebrar a Guerra da Libertação Nacional – ou Narodnooslobodilačka borba (NOB), como se referia na Iugoslávia à guerra de libertação empreendida em guerrilha e liderada por partisãos iugoslavos contra as forças de ocupação do Eixo e seus aliados na região. A partir dos anos 1950, as autoridades iugoslavas investiram na construção de milhares de monumentos e memoriais em referência à NOB, incluindo grandes estruturas (como o Monumento da Batalha de Sutjeska) e muitas outras iniciativas de menor porte, como placas e esculturas. Os monumentos à NOB ocuparam uma posição especial na narrativa da Iugoslávia, tornando pública a centralidade da luta coletiva contra as forças fascistas e criando, assim, uma memória do sofrimento comum a todos os grupos etnonacionais[ii]. As abstratas esculturas e memoriais modernistas-brutalistas relembram uma Iugoslávia que promovia ideais como a modernização e o estatismo, ao mesmo tempo em que evitava a associação com qualquer grupo etnonacional específico.
Em contraste com outros monumentos à NOB erigidos após a II Guerra Mundial e que sedimentaram as bases para narrativas e memórias oficiais daquele período, a construção do Parque Memorial Vraca foi demorada e ocorreu em um contexto no qual a economia já não era mais tão próspera. Foi apenas em 1981 que o memorial de seis hectares foi construído, na tentativa de transformar um lugar associado com o sofrimento em um local de tributo e reunião sociopolítica. O memorial em si compreende diversos monumentos em homenagem a diferentes categorias de vítimas: uma tumba dedicada aos “heróis nacionais da cidade”, uma parede memorial com os nomes dos cerca de 12.000 mortos durante a guerra, um tributo a mulheres guerreiras e um monumento a Tito, o líder dos partisãos durante a NOB/II Guerra Mundial e líder iugoslavo até sua morte, em 1980.
Embora Vraca tenha sido construído durante os anos 1980, em um período marcado pelo ressurgimento do etnonacionalismo na Iugoslávia, o memorial – que prega justamente uma abordagem anti-etnonacionalista – desempenhou um importante papel na vida da cidade por um tempo. Aos poucos, tornou-se um lugar escolhido para encontros coletivos, como no caso do “Young Pioneer”, grupo político formado por jovens; um lugar para celebrar aniversários públicos e feriados, ou simplesmente para sentar e apreciar a vista. Uma página dedicada ao monumento sustenta que “Vraca foi, sem dúvidas, (…) uma referência cultural para a cidade e se afirma como um dos símbolos duradouros e unificadores de Sarajevo durante esse período”.
Ironicamente, ainda que tenha sido criado como um memorial antifascista, Vraca foi utilizado como um dos pontos a partir dos quais as forças paramilitares servo-croatas (VRS) conduziram o cerco a Sarajevo, de 1992 a 1995. De Vraca, as VRS disparavam contra a capital bósnia, utilizando artilharia pesada ou atiradores de elite. As operações da VRS contra o povo de Sarajevo nunca foram reconhecidas como um genocídio pelas cortes internacionais, mas são amplamente denominadas “urbicídio” – expressão que designa o ato de atentar contra a vida urbana, o que envolve a “destruição de edifícios como uma condição de possibilidade para o estar-com-os-outros”[iii]. A partir de Vraca (e de outros pontos de ataque), a agenda de “limpeza etnonacional” visava histórias, culturas e patrimônio coletivos em Sarajevo como alvo cotidiano, destruindo o tecido social da cidade e obstruindo qualquer possibilidade de uma “vida normal”[iv]. Nas palavras do general da VRS Ratko Mladic, “continuem com o fogo de artilharia. Não os deixem dormir. Vamos enlouquecê-los”.
A agenda de destruição total foi empreendida a partir de Vraca. Após a retirada das VRS, o local havia sido completamente devastado, e os arredores, carregados de minas terrestres. Quando a elaboração de políticas de memorialização adquiriu contornos etnonacionais na Bósnia e Herzegovina pós-guerra[v], havia uma miríade de novos monumentos dedicados ao sofrimento de cada um dos povos constitutivos dessa nação (bósnios, sérvios e croatas). Em uma cidade como Brčko, por exemplo, existem três diferentes memoriais na praça principal dedicados às vítimas de cada grupo etnonacional. Não surpreende, nesse sentido, que o Parque Memorial Vraca, um símbolo da união, permanecia abandonado e vandalizado enquanto igrejas e mesquitas eram reconstruídas no país. Muitos outros monumentos à NOB tiveram o mesmo destino, não apenas na Bósnia, mas também na Croácia, Kosovo e Norte da Macedônia. Outros desapareceram por completo, de modo similar ao regime que os erigiu.
Em 2005, o Parque Memorial Vraca foi reconhecido como um monumento nacional graças aos esforços de grupos da sociedade civil, tais como a Associação de Antifascistas e Guerreiros da Guerra de Libertação Nacional do Cantão de Sarajevo (SABNOR). Até recentemente, entretanto, isso não se traduzia em um maior cuidado do lugar, nem em sua reintegração à vida pública da cidade. Em 2020, as memórias da II Guerra Mundial voltaram a tomar as ruas de Sarajevo. Em 16 de maio, uma missa em honra às tropas Ustaše e a civis alinhados ao Eixo assassinados em 1954 por partisãos foi celebrada na Catedral de Sarajevo[vi]. Ainda que a cidade (e o mundo) estivesse em meio à pandemia do coronavírus, milhares de ativistas, membros de organizações antifascistas e outros civis tomaram as ruas em protesto contra o evento religioso. Um dos cartazes erguidos por manifestantes lembrava que “não são necessários tantos fascistas para fazer o fascismo”. O protesto foi uma clara sinalização de que milhares de cidadãos estão dispostos a confrontar reivindicações de memorialização da II Guerra Mundial e das guerras dos anos 1990 avançadas por movimentos de extrema-direita. Os manifestantes também mostraram que, mesmo que a construção de monumentos seja uma prática crucial para estabelecer narrativas oficiais, o “antifascismo não é um monumento”: depende de como as pessoas produzem (enact) essas posições, o que fazem e como praticam aquelas memórias do passado. Das práticas cotidianas, como a limpeza, o cuidado e a curadoria de Vraca por voluntários[vii], a espetáculos mais públicos, como o protesto de 2020 contra a missa, fica claro que a perspectiva antifascista está bastante viva. Tanto as manifestações de maio como o trabalho cotidiano e silencioso de cuidar de Vraca são sinais de que os cidadãos estão dispostos a empreender práticas antifascistas sempre que consideram que as memórias das guerras estão sendo desafiadas, instrumentalizadas ou simplesmente esquecidas. Recentemente, houve também um sinal das autoridades de Sarajevo nessa mesma direção. Em 2019, no aniversário da libertação de Sarajevo das forças fascistas, a Chama Eterna de Vraca foi novamente acendida, após 27 anos.
[i] Liderado por Ante Pavelić, Ustaše é o movimento fascista croata que conduziu um governo autodeclarado do Estado Independente da Croácia durante a II Guerra Mundial. Entre seus objetivos, o movimento visava à independência da Iugoslávia e, uma vez alcançada, seu objetivo era criar um “Estado puramente croata”. Centenas de milhares de sérvios, judeus, muçulmanos e ciganos foram brutalmente assassinados nesse período.
[ii] Ver: Putnik, Vladana. Second World War Monuments in Yugoslavia as Witnesses of the Past and the Future. In: Journal of Tourism and Cultural Change, vol. 14, n. 3, 2016, pp. 206-21.
[iii] Ver: Coward, Martin. Urbicide: The Politics of Urban Destruction. Londres e Nova York: Routledge, 2008.
[iv] Ver: Macek, Ivana. Sarajevo Under Siege: Anthropology in Wartime. Philadelphia: University of Pennsylvania, 2009.
[v] Ver: Subotić, Jelena. Yellow Star, Red Star: Holocaust Remembrance after Communism. Cornell: Cornell University, 2019.
[vi] A missa memorial é organizada anualmente pela Igreja Croata e realizada em Bleiburg, Áustria, onde simpatizantes do regime Ustaše foram mortos por partisãos. A celebração contou com a participação de milhares de pessoas e, no período mais recente, tem atraído um número crescente de fascistas abertamente pró-Ustaše. Devido a restrições sanitárias voltadas à prevenção do contágio do coronavírus, as fronteiras com a Áustria foram bloqueadas em 2020 e, portanto, a missa foi realizada em outro local.
[vii] Ver: Cole, Lydia. Curating Vraca Memorial Park: Everyday Practice, Counter-Politics, and Counter- Monumentalism (Forthcoming).
* Esta série foi originalmente publicada em inglês, no blog Strife, do Departamento de War Studies da King’s College. Ver: https://www.strifeblog.org/2021/07/05/series-on-memory-history-and-power-introduction/
Renata Summa é Pesquisadora de pós-doutorado na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e autora de Everyday Boundaries, Borders and Post-Conflict Societies (Palgrave, 2021).