Praça do Império, Lisboa, 2021 I Fotografia de Olivia Borges

No início deste ano, ressurgiu em Portugal a discussão sobre o passado colonial e os seus legados. Três episódios a convocaram. O primeiro surgiu, em fevereiro, na sequência da proposta de Câmara Municipal de Lisboa de efetuar renovações no jardim da Praça do Império. A praça, situada na zona ocidental de Lisboa, foi inaugurada em 1940, no contexto da Exposição do Mundo Português. Com ela, a ditadura do Estado Novo pretendeu, simultaneamente, celebrar a nacionalidade e o império colonial português, como aliás o próprio nome do espaço acentua. Já na década de 1960, num contexto em que o regime iniciava em África as guerras coloniais que lhe ditariam o fim, foram introduzidos arranjos florais nos jardins. Fazem-se então desenhos de brasões simbolizando as capitais de distrito no país e as “províncias ultramarinas” – o nome que, a partir da década de 1950, serviria como tentativa para ilibar internacionalmente o fato do colonialismo português ter “colônias”. O fato de que a remodelação proposta pela Câmara Municipal de Lisboa não incluía a recuperação desses brasões foi suficiente para que se levantassem vozes contra o que seria uma tentativa de “apagamento da História”, mobilizando setores da direita e da extrema-direita e até de dois antigos presidentes da República, António Ramalho Eanes e Aníbal Cavaco Silva.

]Marcelino da Mata, 1969 | Domínio Público via WikiCommons

O segundo episódio, passado também no mês de fevereiro, deu-se com a morte por COVID-19 de Marcelino da Mata, um militar que se notabilizara na guerra colonial por dirigir um pelotão de comandos africanos extremamente agressivo na Guiné. Como em outras guerras coloniais de então (a da França na Argélia, por exemplo), Portugal também desencadeou, sobretudo nos anos finais do conflito, um processo de africanização da guerra, integrando milhares de negros em suas tropas. Nenhum se notabilizou tanto como Marcelino da Mata, conhecido por sua singular agressividade. Dirigiu várias ações contra populações civis e contra o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), incluindo ações secretas em países limítrofes (como Guiné-Conacri e Senegal), condenadas à época pelas Nações Unidas.

O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e as chefias militares estiveram presentes no funeral. O Ministro da Defesa do governo de centro-esquerda do Partido Socialista (PS) louvou o “empenho e dedicação” a serviço de Portugal. As várias direitas parlamentares e o PS fizeram aprovar na Assembleia da República um voto de louvor a Marcelino da Mata. A natureza burocrática do texto do voto é um sintoma de suas omissões: ao remeter em abstrato para a “coragem e bravura individual” do comando, esquece a tradução concreta de certos atos macabros, que o próprio fez em várias entrevistas, e que configuraram crimes de guerra. Várias vozes recorreram então a um argumento formalista, que consistiu na afirmação de ter sido o militar mais condecorado na guerra, omitindo que tais reconhecimentos foram atribuídos por um regime ditatorial e colonialista, cuja deposição, em 25 de abril de 1974, justamente no quadro de uma derrota política na guerra, é a causa da democracia portuguesa.

O caso agitou o meio político português e teve ondas de choque peculiares. O Centro Democrático Social (CDS), de direita conservadora, propôs um funeral de Estado e luto nacional. O partido Chega, de extrema-direita – surgido há cerca de um ano e com sondagens que atualmente lhe dão 8% dos votos nacionais –, disse que apresentaria uma queixa junto da Procuradoria-Geral da República contra Mamadou Ba, um conhecido ativista antirracista no país, que questionou a justeza de se celebrar como herói um “torcionário do regime colonial”.  O CDS pediu a destituição de Mamadou Ba de um grupo de trabalho público sobre o racismo, e uma petição – que recolheu, em poucos dias, cerca de 20 mil assinaturas – veio pedir que o senegalês naturalizado português fosse “expulso do país”. Ao mesmo tempo, um amplo movimento de solidariedade com Mamadou Ba se ergueu, condenando o racismo, a ignominia e a irracionalidade de uma proposta que visava deportar um cidadão português negro. Em Portugal, o colonialismo é um morto-vivo. A instauração da democracia no país é uma filha direta da derrota do projeto colonial tardio que a ditadura procurou prosseguir ao arrepio das dinâmicas internacionais que se vinham expressando no pós-Segunda Guerra Mundial. A partir da década de 1950, o regime esforçou-se por afirmar a influência do lusotropicalismo, uma ideologia apropriada pelo Estado Novo que contribuiu para definir o colonialismo português como mais benigno e menos agressivo do que outros colonialismos. Quando, em África, iam surgindo novas nações independentes, Portugal iniciava uma guerra colonial em três frentes – Guiné, Angola e Moçambique – contra os movimentos de libertação. O 25 de abril de 1974 é o resultado do impasse de uma guerra que já durava treze longos anos, arrastando milhares de jovens para longe de suas comunidades de origem e afeto e produzindo um cortejo de violências cujas marcas permanecem por desvendar, ainda hoje, na sua totalidade. Ao mesmo tempo, as atrocidades cometidas na guerra continuam cobertas de amnésia. A propagada heroicidade de Marcelino da Mata só é possível num país que voluntariamente quer esquecer a marca genética da sua democracia e que dramaticamente não quer lembrar a violência colonial que é parte intrínseca de sua história imperial.

O terceiro e último episódio ocorreu pouco tempo depois, durante as comemorações oficiais do 25 de abril. Em seu discurso oficial, o Presidente da República decidiu proferir um discurso forte e inédito sobre o passado colonial e a guerra. A intervenção mereceu aprovação quase unânime por parte de políticos e comentadores. Talvez isso se explique pela natureza algo ambígua do discurso, ora referindo à necessidade de “estudar o passado e nele dissecar tudo”, a contracorrente das visões glorificadoras do império, ora alertando para o perigo de “autoflagelações globais excessivas”. Um discurso que, se é certo que falou dessa (inexistente) simetria, também mencionou a violência, o racismo e a escravatura. Não é coisa pouca num país onde a memória pública é, ainda hoje, marcada por leituras que insinuam a grandeza dos “Descobrimentos” e a singularidade da “presença portuguesa no mundo”.  Se é verdade que tem crescido o peso das vozes dissonantes (na academia, nas artes, nos movimentos sociais e em setores da esquerda política), o certo é que imagens de um suposto grande passado imperial permanecem socialmente encrustadas. No país, habita, ainda hoje, o que se poderia definir como um caldo de imperiofilia, definidor de uma parte significativa dos discursos sobre sua identidade e sua história. O peso de uma história colonial negada desponta no racismo manifesto na atuação das polícias, nas políticas de habitação e segregação, nas leis de nacionalidade, no discurso de crescentes setores políticos, bem como numa auto-representação do país, de seu povo e de seu passado marcada pelo lastro duradouro do lusotropicalismo ou pela manutenção da velha retórica sobre “mártires” e “heróis do Ultramar”. Portugal tem lugar de destaque nessa vasta história europeia que, encerrada em termos políticos, vai teimando em manter-se viva como imaginário nacional e em suas distintas reverberações sociais – e de que o racismo é uma de suas faces mais visíveis. Foi com a consciência de que seria necessário enfrentar esse passado que, na França, Emmanuel Macron encomendou um relatório para se fazer um inventário sobre a colonização e a guerra na Argélia. No mês passado, o historiador Benjamin Stora entregou um conjunto de 22 recomendações ao Presidente francês, entre as quais se contam várias iniciativas memoriais conjuntas entre os dois países: entre elas, o esclarecimento de alguns massacres e crimes cometidos; a abertura de arquivos e o impulso à investigação comum sobre esse passado; a renovação dos programas escolares; a promoção de exposição e colóquios sobre a guerra em suas múltiplas faces, incluindo a recusa da guerra, e sobre as independências africanas. Iniciativas similares nunca foram empenhadas por governos portugueses e, mesmo não sendo de aplicar qualquer cópia do processo francês, a verdade é que, em Portugal, a guerra é, ainda hoje, um silêncio demasiado ruidoso. E o colonialismo, como seu pano de fundo, vai permanecendo como um passado reconfortante, embora crescentemente questionado. O tempo das imagens benevolentes talvez esteja a aproximar-se do fim.

* Esta série foi originalmente publicada em inglês, no blog Strife, do Departamento de War Studies da King’s College. Ver: https://www.strifeblog.org/2021/07/05/series-on-memory-history-and-power-introduction/  


Miguel Cardina é Historiador e pesquisador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. É coordenador do projeto “CROME – Memórias Cruzadas, Políticas de Silêncio. As Guerras Coloniais e de Libertação em Tempos Pós-Coloniais” (StG-715593), financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC).