Estátua de Cristóvão Colombo derrubada por membros de movimento indígena americano em Minnesota, em 2020 | Foto de Tony Webster

Nos últimos anos, vimos em vários países do mundo disputas em torno de estátuas e monumentos. Memoriais dedicados a conquistas militares, heróis de guerra, colonialistas e traficantes de escravos estiveram no centro do debate sobre a desconstrução da história e as formas como determinados eventos e grupos nacionais são inscritos no espaço público. Em 2019, por exemplo, vimos a capital chilena, Santiago, ser tomada por milhares de manifestantes empunhando a bandeira do povo indígena Mapuche. Uma foto em particular ganhou destaque mundo afora: nela, dezenas de manifestantes escalavam uma estátua militar e, no topo, um deles hasteava a bandeira do povo indígena que, desde a invasão dos colonizadores espanhóis, no século XVI, vem sendo massacrado no Chile. Na África do Sul, a campanha Rhodes Must Fall levou à retirada de uma estátua em homenagem ao imperialista Cecil Rhodes da Universidade de Cape Town e acendeu a discussão sobre outros monumentos em sua memória no país. Em 2020, cenas similares se repetiram na Europa, nos Estados Unidos e na América Latina, quando estátuas do comerciante de escravos Edward Colston, de Cristóvão Colombo, do rei belga Leopoldo I e do missionário jesuíta português Padre António Vieira (para citar alguns dos casos mais famosos) acordaram no fundo de um rio, pintados com tinta vermelha, sem cabeça ou com placas dizendo: “descolonize”. Tais movimentos têm o objetivo de problematizar o que é lembrado na esfera pública e de chamar a atenção para como monumentos como esses estão relacionados à forma com a qual concebemos a história de um país ou a história do colonialismo e da escravidão.

“Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie”,[i] escreve Walter Benjamin, em sua sétima tese sobre o conceito de história. Para uns, estátuas como as de Colston, Rhodes e Vieira são símbolos da civilização. Para tantos outros, lembranças de massacres e genocídios, símbolos da barbárie. Monumentos como, por exemplo, o Padrão dos Descobrimentos, até hoje em pé em Lisboa e erguido como homenagem ao Infante D. Henrique – considerado o grande patrono da expansão colonial portuguesa do século XVI –, representam a memória dos vencedores, fixam a história da forma como o poder a quis contar. É por isso que, se tomamos Benjamin e sua crítica à história como norte, é preciso desconstruir os monumentos erguidos pelas narrativas históricas tradicionais. E são, justamente, a estes processos de desconstrução que temos assistido nos últimos anos em vários lugares do mundo.

O debate sobre monumentos, portanto, deve ser visto dentro do escopo mais amplo da história, da memória e das dinâmicas de poder imbricadas nesses dois fenômenos. Em artigo recente para o jornal francês Le Liberátion, Paul B. Preciado descreveu estátuas como “próteses da memória histórica que nos lembram as vidas ‘que importam’”. Fixam no espaço público os corpos que merecem ser eternizados em pedra e metal. “As esculturas públicas”, diz ele, “não representam o povo, elas o constroem: designam um corpo nacional puro e determinam um ideal de cidadania colonial e sexual”. Criticar a história celebrada nas estátuas é, portanto, criticar a própria construção do estado-nação. Esta série especial analisa, por um lado, eventos e personagens selecionados para serem marcados na paisagem nacional; e, por outro, o potencial da arte para perturbar ideais nacionais e imperiais, atuando muitas vezes como uma espécie de contra-memória.

Próximos textos

Parte I: “Portugal: o retorno da guerra colonial”, por Miguel Cardina

Parte II: “Qual porta para qual cidade? O Parque Memorial Vraca e o legado antifascismo em Sarajevo”, por Renata Summa

Parte III: “O Uruguai indígena: monumentos, histórias e memórias”, por Henrique Gasperin

Parte IV: “O Atlântico Vermelho: modernidade e marcadores de discriminação”, por Victor Coutinho Lage

Parte V: “A costura da memória: história(s) alternativa(s) do passado e do presente”, por Mariana Caldas


[i] Ver: Walter Benjamin, “Sobre o conceito de História” in Walter Benjamin – Obras Escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política (São Paulo: Editora Brasiliense, 1994), p. 225.

* Esta série foi originalmente publicada em inglês, no blog Strife, do Departamento de War Studies da King’s College. Ver: https://www.strifeblog.org/2021/07/05/series-on-memory-history-and-power-introduction/


Luciana Martinez é Doutoranda do Programa de Pós-Colonialismo e Cidadania Global, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, e bolsista da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Mestre em Relações Internacionais pela PUC-Rio e editora especial do blog Strife, da King’s College. Nos últimos anos, tem pesquisado sobre memória do colonialismo português em Portugal e no Brasil atuais a partir da análise de objetos culturais. Twitter: @ltmartinez_