Em uma das muitas lives dos últimos meses, em um debate organizado pela revista argentina “Catarsis” em fins de maio[1], Rita Laura Segato comentou que se quisermos saber como serão os tempos pós-pandemia, precisamos olhar ao nosso redor e identificar como as pessoas estão vivendo essa situação de crise. Isso me pareceu instigante, pois dias antes uma colega havia contado da vida em uma comunidade quilombola e do quanto a situação de crise sanitária tinha fortalecido os laços da comunidade. As histórias compartilhadas por ela eram muito distintas das que eu escutava dos amigos vivendo em grandes cidades, das mães solo, dos refugiados na fronteira com a Venezuela, das pessoas organizadas em movimentos campesinos, das habitantes de rua ou das comunidades indígenas no interior do Mato Grosso do Sul. Essas vivências eram ainda outras em relação às que contavam os amigos e amigas que moravam na Grécia, na Itália, na Inglaterra, na Argentina, nos Estados Unidos, na Colômbia, na Índia, no País Basco ou outras partes da Espanha e das milhares de manifestações nos lembrando de modo contundente que “as vidas negras importam!”. Ao escutar essas narrativas senti que para alguns a pandemia era um “inferno”, para outros um “purgatório” e para outras ainda “um tempo de silêncio ou reivindicação”. Entre os afetos mais comunicados estavam a raiva, o medo e a desesperança. Como observar a instrumentalização pública dos (nossos) sentimentos? Estamos diante de um clima emocional de sociedades globalizadas pelo Covid-19?

Para Mari Luz Esteban (2013), o corpo é um nó formado por estrutura, ação, experiência e economia política. De forma semelhante, Sara Ahmed (2019) sugere que as emoções não são um atributo dos indivíduos ou encarnações isoladas. Elas estão inscritas em uma economia, poisestão inseridas em um contexto de acumulação, no qual o valor dos afetos não se aloca nos objetos, mas nos “efeitos de sua circulação e contato” (2019, p.13). Nessa perspectiva, a experiência e a reflexão corporal, incluindo aí as emoções, orientam as ações humanas e, em conjunturas específicas, transformam e resistem às estruturas sociais e políticas, do mesmo modo que são constrangidas por elas (Esteban, 2013).

Desde uma identidade feminista e crítica aos colonialismos existentes, era impossível me distrair diante dos contextos de quem sente. Pode parecer óbvio que a percepção da crise também era sentida a partir dos locais ocupados nas estruturas desiguais de classe, raça, etnia, gênero, sexualidade, idade/faixa etária e tantas outras posições sociais e políticas que nos definem ainda que tentemos superá-las. Mas o que esses sentimentos nos revelam sobre nossa sociedade ou nosso tempo?

A partir dessa perspectiva da centralidade do corpo e das emoções na experiência social, essa coluna é um convite para olharmos ao redor, escutar as múltiplas vozes, farejar outros sabores e sentir o peso da empatia ou o afã da discórdia. Minha proposta é reunir depoimentos a partir da pergunta: “Como você está vivendo (n)a pandemia?”, com esperança de que vagarosamente se construa um mosaico que nos permita sonhar com outro mundo possível, recolhendo o modo como cada sujeito, cada sujeita, cada grupo social atribui sentido às suas vivências nesse momento que defino como “crise”. Escolhi essa palavra, pois estamos diante de tempos de exceção, os sentidos mudaram, a rotina é outra e a forma como os Estados atuam já não é a mesma. No caso do Brasil, lutamos para que as pessoas fiquem em casa e isso é, no mínimo, curioso se compararmos ao histórico de lutas contra a ditadura militar. Mas, por hora, não me aprofundarei nesse tema, o interesse é apresentar a proposta “As encarnações da pandemia”, cujo título reforça que emoções e corporalidades são parte das relações de poder que nos atravessam. Ou seja, como vivemos nos dá pistas sobre as estruturas de sustentação da ordem mundial e suas transformações.

Esse projeto, que espera lançar de forma periódica relatos em primeira pessoa (em forma oral, imagética ou escrita), é uma inspiração livre da obra “A aventura de contar-se” de Margareth Rago. Também renova a máxima feminista “o pessoal é político e teórico” (Okley, 1975 apud Gregório, 2014, p. 299), ao mesmo tempo que recorda as palavras de Rita Laura Segato nos desafiando a fazer a política do dia-a-dia, refazer o tecido comunitário e derrubar os muros que encapsulam os espaços domésticos, nos convidando a observar a prática política a partir de outras perspectivas (2018, s/p).

Mas, antes de terminar, preciso contar um pouco de mim. Sou feminista, professora, atualmente vinculada a uma universidade federal (UFGD) e um programa de doutorado. Tenho um filho de quase quatro anos, que muito me ensina. No contexto de pandemia, aceitei o convite do isolamento e vivi por alguns meses a experiência de voltar à casa dos pais, na tentativa de fortalecer laços de apoio mútuo, no Centro-Oeste do Brasil.  Entre as experiências mais marcantes, destacamos duas: a experiência de amigos e amigas vivendo em comunidade, como possibilidade de enfrentamento da crise; e a situação de extrema violência que vivem os povos subalternizados pela opressão colonial em nosso país. Senti o trabalho virtual me consumindo, gostei de participar em reuniões na quais uma parte do meu corpo vestia uma camisa, enquanto os pés permaneciam descalços e as pernas e seus pêlos à mostra. Foi difícil participar de congressos virtuais, ao mesmo tempo em que meu filho me convidada para brincar, eu preparava um alimento ou limpava a casa. Mas, também creio que essa confusão de campos, entre o público e o privado, é um convite para repensarmos nossa atuação política. O “voltar a casa”, uma questão nitidamente de classe e raça, é um convite a reflexão sobre a terceirização da vida. Senti dificuldade de me dedicar à pesquisa e cada dia parecia intenso e único, com um turbilhão de emoções: a sensação de perigo se perdia diante de um medo gritante. Nesse contexto recebi alguns convites para responder aos questionamentos: o que pensa sobre a pandemia? Como esse tema/tempo se vincula com as discussões de Relações Internacionais e suas pesquisas? Confesso que esbocei algumas linhas, mas recusei a todos os convites de manifestação pública. Em alguma dimensão, estava irritada: “fodam-se as RI!”, eu mal consigo ter um espaço tranquila para chorar.

Quando recebi o convite para esse texto, ainda em maio, escrevi: “Estou cansada.”. Ao comentar com minha mãe sobre essa sensação, ela me respondeu: “Isso faz parte da vida, todos estão cansados”. Isso me causou indignação. Se o cansaço é um clima emocional compartilhado, até quando permaneceremos nele? Do que estamos cansadas? De tanto trabalho ou da tripla jornada feminina? Cansadas de não dormir? Cansadas da vida esperando a morte?  Essa estafa é um efeito de políticas de contenção?

E vale lembrar que essa sensação crônica é compartilhada também entre as que tinham um trabalho, um salário, uma casa e comida na dispensa. Mas, algumas pessoas ao meu redor estavam dependendo da bolsa emergencial do Governo Federal e, para outras, ela nunca chegou. Muitas pessoas perderam o emprego, muitas informais tiveram sua renda reduzida a zero e viveram a situação de violência doméstica potencializada. Essas pessoas também estavam cansadas? Esse cansaço pode se transformar em incômodo, indignação e raiva que nos movimente a desvelar relações opressivas?

Enquanto isso, partidários do atual governo tornaram tabu as conversas sobre política, acreditando em “caixões vazios”, “epidemia chinesa”, “hospitais de fachada” (o que justificaria invasões em estabelecimentos de saúde), e tantas outras mentiras… sem se dar conta que enquanto isso, um menino negro caía de um prédio de alto padrão em Recife… No meio de tudo isso, eu não conseguia pensar, só sentir. Pensar se tornou atributo dos fortes e eu era vulnerável demais para fazer qualquer prospecção (arbitrária) de cenários… Por isso busquei em Audre Lorde, bell hooks e Carolina de Jesus inspiração para teorizar desde a dor, a raiva e tantas outras incomodidades que indicam que algo precisa ser olhado, sentido, vivido e transformado. “Precisamos desnaturalizar as desigualdades para não voltar à normalidade”!

Referências

Ahmed, Sara. La promesa de la felicidad. Un crítica cultural al imperativo de la alegría. Buenos Aires: Caja Negra, 2019.

Esteban, Mari Luz. Antropología del cuerpo. Género, itinerarios corporales, identidad y cambio. Barcelona: edicions bellaterra, 2013.

Gregorio, Carmen. Traspasando las fronteras dentro-fuera: Reflexiones desde una etnografía feminista”. In: AIBR Revista de antropología Iberoamericana, 9(3):297-322, 2014.

Segato, Rita Laura. Rita Segato: la raíz de la nueva política. Fragmentos disponibles en “La Vaca”, dezembro de 2018. Disponível em: https://www.lavaca.org/mu130/rita-segato-la-raiz-de-la-nueva-politica/. Acesso em julho de 2020.


[1] Conversa que pode ser encontrada em: https://www.facebook.com/gramscienamericalatina/videos/2980747011962403.


Tchella Maso é educadora feminista, mãe, professora assistente da Faculdade de Direito e Relações Internacionais da Universidade Federal da Grande Dourados (FADIR/UFGD), doutoranda em “Estudos Feministas e de Gênero” pela Universidade do País Basco (UPV/EHU). Interessada em temas vinculados à América Latina, mulheres, afetos e espiritualidade. Currículo Lattes