O problema do sujeito não é um debate novo nas Relações Internacionais. Em fins da década de 1980, as abordagens pós-estruturalistas já haviam buscado demonstrar tanto os limites das autoimagens da disciplina, quanto de seus sujeitos ou atores principais. Nessa crítica direcionada principalmente ao realismo, era importante salientar que as vertentes tradicionais de Relações Internacionais circunscreviam seus estudos ao papel dos Estados soberanos como sujeitos centrais. Além disso, elas preocupavam-se com a identidade acadêmica da própria disciplina, o que levou o realismo a priorizar também o nível de análise do sistema internacional. Dessa forma, fazer Relações Internacionais significaria fazer a descrição e a explicação de fenômenos políticos e econômicos ocorridos em um sistema formado por Estados soberanos. De sua parte, as abordagens pós-estruturalistas procuraram atacar esse estatocentrismo, por exemplo, através da genealogia das práticas que constituíram historicamente o Estado soberano como nós o conhecemos. Em outras palavras, uma das maneiras de fazer essa crítica é perceber que ele não se trata de uma entidade fixa no tempo e está sujeito a mudanças.

Assim, quando mencionamos o Estado em nossa linguagem corrente estamos em geral fazendo referência ao Estado nacional que surgiu no Ocidente há pouco mais de duzentos anos. Também é comum que esse sujeito central das Relações Internacionais seja antropomorfizado com base nos indivíduos de carne e osso, por sua vez equiparados à ideia de homem racional como sinônimo de ser humano. Quer dizer, os Estados teriam interesses e vontades e estariam dotados da capacidade de agir autonomamente a fim de satisfazê-los. O ponto de intersecção entre os dois sujeitos – Estados e indivíduos – é o homem de Estado. Como destaquei em outra oportunidade[1], nossas análises partem comumente do hábito mental de indagar sobre os sujeitos responsáveis pelas ações que impactam o cenário internacional. Gostaria agora de salientar como o debate do sujeito em Relações Internacionais não é apenas uma questão epistemológica, mas um problema ético e prático. Quando a pandemia global do novo coronavírus começou a disseminar-se seriamente pelos Estados Unidos, o presidente norte-americano passou a responsabilizar de modo constante a China pelo ocorrido e por seus efeitos devastadores. A mensagem principal é a de que a China é culpada. De seu lado, como homem de Estado responsável, ele deveria então salvar seu país de uma patologia estrangeira tal como faria um herói de guerra.

Temos aqui um exemplo de prática discursiva que investe nos modos de conhecer tradicionais da disciplina de Relações Internacionais. Há dois Estados que aparecem como sujeitos autônomos e protagonistas dos acontecimentos mundiais; há um homem de Estado que culpabiliza ações e atribui responsabilidades; há uma presunção de que a pandemia é uma patologia que poderia ser contida do lado de fora das fronteiras nacionais. Menciono aqui o presidente dos Estados Unidos porque busco refletir sobre o problema do sujeito como prática. Não almejo prever as consequências da pandemia para a grande correlação de forças entre as potências, tampouco reiterar censuras políticas que são lugares-comuns. Destaco apenas o fato de que os Estados Unidos são o país com mais casos da doença no mundo, o que indica dificuldades evidentes em lidar com a situação. Paralelamente, percebo a imensa proliferação do coronavírus não apenas como flagelo real que cobra vidas, senão também como sujeito protagonista das manchetes de imprensa. Se pensarmos agora na lógica tradicional e nos diversos debates de nosso campo de estudos, caberia indagar se o novo coronavírus não é afinal um novo sujeito das Relações Internacionais.

Como salientou Hayles recentemente[2], o novo coronavírus pode ser considerado pós-humano em dois sentidos. Primeiro, porque ele não se importa com as intenções, os desejos e os motivos humanos. Ao aplicar essa constatação às Relações Internacionais, vejo que a lógica de organização desse vírus é completamente outra em face de pressuposições tais como liberdade, autonomia, culpa e responsabilidade, as quais formam as bases do que entendemos por sujeito no Ocidente faz pouco mais de duzentos anos. Em segundo lugar, os vírus e os humanos têm estratégias evolutivas distintas. Por um lado, os seres humanos evoluem pelo aumento da complexidade, por exemplo, com a sofisticação da linguagem e da capacidade cognitiva associadas a mudanças no cérebro e no corpo, assim como através de estruturas sociais mais elaboradas. Em especial nos últimos duzentos e poucos anos, temos evoluído também pelo avanço dos aparatos tecnológicos. Por outro lado, os vírus evoluem pelo aumento da simplicidade. Eles utilizam as estruturas de nossas células para proliferar. Quanto menor é o genoma do vírus, mais rápido ele se replica, avança e evolui. Voltemos agora um pouco para as Relações Internacionais. Para usar uma expressão que todos compreendemos, temos visto que até o momento o coronavírus tem vencido a guerra. Nesse caso, parece que o menos é mais. A complexa maquinaria de nossos corpos – biológicos e políticos – não tem funcionado satisfatoriamente.

Desde o começo do século XXI, a sensação no debate acadêmico é a de que as abordagens pós-estruturalistas haviam cruzado todos os limites. Não era possível eliminar completamente as estruturas políticas e econômicas existentes no cenário internacional, tampouco desejável radicalizar as questões epistemológicas para depois encontrar-se na prática em um beco sem saída[3]. Como humanos, parece que não devemos ter essa liberdade. Segundo Ferrando[4], o debate acadêmico atual tem utilizado o termo “pós-humano” como uma chave que sinaliza a urgência da redefinição da noção tradicional de “humano” em face das mudanças onto-epistemológicas, biotecnológicas e científicas que enfrentamos hoje. Uma das múltiplas facetas do pós-humanismo é colocar em questão o antropocentrismo. Para que eu tente explicar isso de modo simples, o pós-humanismo é uma agenda ampla, diversa e relativamente nova que pontua que o “humano”, assim como o Estado, não é uma condição imutável e fixa. Por sua vez, o antropocentrismo é uma ideia que data ao menos do começo da Renascença, de acordo com a qual o homem é identificado com o humano e estaria no centro do Universo. Um dos problemas dessa visão, além é claro de sua vaidade, é supor que temos uma onipotência que parece que não temos. A pandemia global tem deixado clara a fragilidade de nossos corpos.

Como agenda teórica mais recente, o pós-humanismo aproveita as inquietações do pós-estruturalismo em relação aos limites do sujeito como indivíduo, como homem, como Estado e como homem de Estado, bem como o importante trabalho avançado pelas teóricas feministas até a década de 1990. As mudanças onto-epistemológicas em curso neste século indicam que estamos repensando o que somos e como conhecemos o mundo. Isso também envolve importantes escolhas éticas e práticas. Gostaria de salientar agora como o pós-humanismo já impactou o debate menos geral do campo de Relações Internacionais. Afirmam Cudworth e Hobden[5] que o debate agente-estrutura é um dos mais persistentes em nosso campo, o que indica que não há uma resposta única para a questão. É de fato uma questão velha, que poderia ser simplificada da seguinte maneira: quem determina afinal os eventos internacionais, as estruturas ou os agentes? Destacam os autores que essa pergunta se desdobra em outras, tais como: quem são os atores ou sujeitos de Relações Internacionais? Qual é o espaço de sua agência ou liberdade para agir? O que é Relações Internacionais como campo de estudos? Não tenho tampouco respostas únicas para essas difíceis questões, mas posso afirmar que elas refletem sobre o problema do sujeito. Almejo destacar por enquanto que Cudworth e Hobden propõem atravessar esse debate com apoio no pós-humanismo e nas teorias da complexidade, cuja extensão e profundidade não me cabem agora investigar.

Eles salientam que o mundo atual se tornou complexo e não linear, ou seja, nem os computadores e menos ainda os seres humanos têm hoje a capacidade de prever todas as cadeias de causas e efeitos que podem decorrer das ações e eventos internacionais. Esse mundo complexo e não linear poderia ser melhor compreendido como um conjunto de sistemas que interagem e se justapõem, sem que haja um centro único de sentido. Nesse modelo, os sistemas são considerados dinâmicos e adaptáveis a mudanças. Vou dar dois exemplos simples citados pelos autores: os Estados são sistemas que interagem dentro do sistema internacional; e os vírus são sistemas que interagem dentro do corpo humano. Há aqui dois desdobramentos que me interessam. Primeiro, não temos a capacidade de saber com certeza quem é responsável pelo que e quais são todas as consequências possíveis dessas ações ou desses eventos. É assim que Cudworth e Hobden atravessam o debate agente-estrutura e reafirmam que agente e estrutura se co-constituem, pois não se excluem e implicam-se mutuamente. Essa ideia também não é nova. Vou formular o segundo desdobramento como pergunta, não mais do que isso: por que apenas os seres humanos seriam capazes de criar estruturas e agir com impacto no mundo? É nesse aspecto que os autores propõem a abordagem do pós-humanismo em Relações Internacionais. O sistema internacional estaria, portanto, imbricado tanto em interações humanas, por exemplo, dos Estados e dos homens de Estado entre si; quanto não humanas – por exemplo, do impacto de um vírus. O que a pandemia global do coronavírus está mostrando é que humanos e não humanos são também sistemas que interagem e se chocam.

Presidente dos Estados Unidos – China – novo coronavírus. Pelas manchetes de imprensa, tenho a impressão de que esses três são sujeitos das Relações Internacionais, mas desconfio que podem ser sujeitos gramaticais tomados por ilusões de autonomia ou assim interpretados. Se pensarmos a proposta do pós-humanismo e da complexidade, poderíamos compreendê-los como sistemas – biológicos, políticos, patológicos – que estão enfrentando suas interações dinâmicas e mudanças evolutivas cada qual a seu modo. Nem o presidente norte-americano, nem a China parecem tão autônomos quanto demonstram parecer. É irônico e desalentador, mas no momento é o coronavírus quem tem cruzado todos os limites. Em todo caso, não é minha função aqui fazer previsões. É preciso também ter algumas esperanças. Outro elemento muito interessante do pós-humanismo é sua perspectiva pós-dualista. Não quero então fixar-se ou no desalento, ou na esperança. Ou no agente, ou na estrutura. Se também sou um sistema, sou dinâmico e adaptativo. Dessa forma, o pós-antropocentrismo não busca substituir a centralidade do sujeito homem/humano por outra seja do vírus, seja da máquina. Estamos mais próximos do vírus do que parece. Hayles destaca que há também entre nós mútua dependência. Por exemplo, pesquisas científicas recentes descobriram vestígios de DNA de vírus antigos em células-tronco humanas. Também há evidências que indicam um papel importante desses vírus pré-históricos na formação das primeiras células que deram origem à vida na Terra tal como a conhecemos[6]. Em outras palavras, como sistemas os seres humanos e os vírus estão interagindo e impactando-se há muito tempo. Formas distintas de vírus estão envolvidas na vida e na morte. Para além desse dualismo radical, quero apenas indicar que estamos no momento adaptando nossos modos de existência ao novo coronavírus. Isso também envolve o aprendizado diário de muitas pessoas com o luto, assim como o aprendizado diário da ciência para obter a vacina.

Não é fácil descrever ou explicar de modo simples um mundo complexo. Vou apenas retomar um ponto de partida para encerrar. Os acontecimentos da pandemia global sinalizam para mim que o problema do sujeito em Relações Internacionais não é apenas um debate epistemológico. Há teoria na prática, prática na teoria. O pós-humanismo é uma nova agenda em nosso campo de estudos que busca redefinir a condição humana na atualidade. Na teoria da prática, o ser humano não seria mais visto exclusivamente como sujeito autônomo, mas sim como uma espécie de sistema que tenta adaptar-se e integrar-se de modo mais harmonioso em um ecossistema maior. Ferrando afirma que essa integração pode se operar em uma rede de relações, na qual estamos sempre mudando ou tornando-nos outros por meio de tecnologias da existência[7]. As tecnologias da existência não estão fixas e distantes no mundo complexo lá fora. Elas têm a ver com a ética de nossas vidas simples. São a prática da teoria. Praticar o pós-humanismo hoje implica praticar noções de cuidado de si em face do coronavírus e dos aparatos tecnológicos que nos avassalam. Também implica repensar com cuidado o que somos.

Brasília, 31 de julho de 2020.


[1] Muñoz, Luciano da Rosa. O sujeito nas Relações Internacionais: um problema epistemológico. Universitas Relações Internacionais, Brasília, v. 13, n. 1, p. 1-13, jan./jun. 2015. Disponível em https://www.publicacoes.uniceub.br/relacoesinternacionais/article/view/3249. Acesso em 31 de julho de 2020.

[2] Hayles, Katherine N. Novel Corona: Posthuman Virus. Critical Inquiry, 2020. Disponível em https://critinq.wordpress.com/2020/04/17/novel-corona-posthuman-virus/. Acesso em 31 de julho de 2020.

[3] Huysmans, Jef; Nogueira, João Pontes. Ten Years of IPS: Fracturing IR. International Political Sociology, Volume 10, Issue 4, December 2016, p. 299-319.

[4] Ferrando, Francesca. Posthumanism, Transhumanism, Antihumanism, Metahumanism, and New Materialisms: Differences and Relations. Existenz: an International Journal in Philosophy, Religion, Politics, and the Arts, Volume 8, No. 2, Fall 2013. Disponível em https://existenz.us/volumes/Vol.8-2Ferrando.pdf. Acesso em 31 de julho de 2020.

[5] Cudworth, Erika; Hobden, Stephen. Of Parts and Wholes: International Relations beyond the Human. Millenium – Journal of International Studies, 41 (3): 430-450, June 2013. Disponível em https://www.researchgate.net/publication/258171459_Of_Parts_and_Wholes_International_Relations_beyond_the_Human. Acesso em 31 de julho de 2020.

[6] Hayles, 2020.

[7] Ferrando, 2013.


Luciano da Rosa Muñoz é doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (IREL/UnB). Em seu trabalho de tese, investigou a genealogia das práticas que constituíram o debate sobre a autonomia no Brasil, com ênfase na política externa, entre as décadas de 1940 e 1970. É professor de Relações Internacionais nos cursos de graduação e de especialização do Centro Universitário de Brasília (UNICEUB), onde também coordena o Núcleo de Estudo e Pesquisa do Pensamento Político e Humanidades (NEPEP). No momento, o Núcleo está desenvolvendo o projeto “Casa da Sabedoria”, o qual utiliza o formato de “webinário” para convidar os alunos a participarem de debates diversos dentro do campo de Relações Internacionais. O autor publicou artigos em revistas acadêmicas da área tais como a Monções e a Carta Internacional em temas como a Política Externa Brasileira e a Teoria das Relações Internacionais. Atualmente, está organizando o livro Relações Internacionais para um mundo em mutação: policentrismo e diálogo transdisciplinar, cuja publicação deve ocorrer em breve. Currículo Lattes.