Tenho passado a quarentena nos arredores de um grande hospital numa cidade de cerca de 500.000 habitantes no interior de São Paulo, e, apesar da alta ocupação dos abundantes leitos destinados a terapia intensiva, as horas se sucedem com tranquilidade e silêncio. Um amigo me relatou rotina igualmente tranquila e silenciosa nas cercanias do Hospital das Clínicas. É claro que esses são apenas dois registros e não podemos ter uma ideia do que se passa no país com base em relatos anedóticos. Mas me parece válida a impressão de que, no início da pandemia, muitos dentro nós se alarmaram e enlutaram com as imagens e histórias que nos chegavam da Europa. Lembro, por exemplo, de uma imagem icônica de carros funerários se sucedendo nas vias públicas, em uma espécie de cortejo. Penso que essas imagens e histórias, muitas contadas com sentido de urgência por profissionais da saúde italianos, circularam em escala global, dando visibilidade e audibilidade ao que acontecia. Já a nossa tragédia me parece mais discretamente encenada em grandes cidades brasileiras, e isso graças em larga medida ao próprio funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS): de modo geral, os hospitais continuaram operantes, leitos adicionais foram abertos, hospitais de campanha foram montados, corpos não se acumularam nas casas à espera de sepultamento.
Mas registros do drama em hospitais – que depois descobrimos terem se tornado espaços especialmente vigiados, como na cidade do Rio de Janeiro –, da abertura de covas no cemitério da Vila Formosa, em São Paulo, e da busca por tratamento em Manaus correram o país. Entendo que, diante da circulação desses registros e as respostas que, em geral, não vemos, essa é uma ocasião propícia para pensarmos o que é espaço público, como espaços físicos se tornam públicos e como o que se passa neles se torna objeto de interesse e debate em escala nacional. Pois, se a tragédia que a morte de mais de cento e cinquenta mil pessoas representa foi encenada com alguma discrição no Brasil, não faltaram representações suas, nem informação a seu respeito. Jornais impressos, como a Folha de S. Paulo e O Globo, e televisivos, como o Jornal Nacional, noticiam a evolução da pandemia no Brasil, as mortes diárias, e dão espaço a histórias dos falecidos. Esses veículos mostram todos os dias, há meses, o rosto dos mortos e a dor dos que lhes sobrevivem. Nada disso tem bastado para que a mortandade em um mesmo território, por uma mesma causa, seja experimentada como perda coletiva. Matérias de jornais, postagens em mídias sociais e conversas privadas fazem pensar que todos sentem ao seu modo o peso das restrições decorrentes das medidas quarentenárias, cada dia mais relaxadas; já as mortes afetam os mais pobres e os subalternizados desigualmente, e não tocam a todos igualmente no plano da sensibilidade. Não põem de luto a universalidade da cidadania, nem, ao que parece, convidam-na a pensar publicamente.
O direito, aí incluído o direito internacional, pode ter uma parte no encaminhamento de aspectos do problema da pandemia no Brasil. O Supremo Tribunal Federal foi acionado tanto por governadores, para assegurar sua liberdade de ação considerando o concurso de competências suas e do Executivo federal na pandemia, quanto pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), neste caso para constranger o governo federal a assegurar-lhes meios para implementar medidas sanitárias e a tratamento. Em meio à tragédia, os direitos humanos também aparecem em falas de intelectuais e estudantes, políticos profissionais, aplicadores do direito e ativistas para enquadrar a mortandade decorrente da pandemia no Brasil e atribuir responsabilidade por ela. Tais direitos possibilitam falar em crimes contra a humanidade e genocídio. Um aspecto da situação a que gostaria de dedicar atenção é que suas falas, por justas e rigorosas que sejam, mostram-se disparos de um alarme que não ressoa na sociedade brasileira. Na sequência seguirei pensando mais detidamente o problema da não ressonância dessa espécie de aviso de incêndio, e para isso me proponho recuperar escritos sobre direitos humanos que abordam a relação entre a letra da lei, a sensibilidade em relação a outros desconhecidos e a imaginação.
Faço um grande recuo, até a França pré-Revolução de 1789. Em seu livro A invenção dos direitos humanos: uma história[1], Lynn Hunt analisa a recepção na Europa dos romances Clarissa e Pamela, de Samuel Richardson, publicados em 1740 e 1747-8, respectivamente, e Júlia, ou a Nova Heloisa, de Jean-Jacques Rousseau, publicado em 1761. Na pista da sincronia entre a publicação dos três romances e a circulação da categoria “direitos humanos”, Hunt pensa como a leitura deles contribuiu para a inscrição desses direitos na ordem jurídica francesa, isto é, para a sua primeira inscrição constitucional em forma semelhante à que têm hoje.
Clarissa, Pamela e Júlia são romances epistolares, trocas fictícias de cartas escritas por homens tendo mulheres por protagonistas. Em suas correspondências, essas mulheres dividem seus sentimentos mais íntimos: a paixão e o aprendizado do amor, os laços familiares e o desejo, o sofrimento, a virtude e a indignação diante do injusto em sua vida cotidiana e em suas relações. São mulheres comuns – Júlia, de classe média, Pamela, uma criada – e, ao mesmo tempo, heroínas em cujas cartas, afirma Hunt, percebe-se um desejo por autonomia, o florescimento de sua personalidade, ou simplesmente que elas habitam um mundo moral.
Para sustentar o argumento de que a leitura dos romances contribuiu para a inscrição dos direitos humanos na ordem jurídica francesa, Hunt precisa analisar a circulação dos livros. Ela o faz recuperando cartas de cortesãos, clérigos, militares a Rousseau e afirma, com base nelas, que os romances provocaram “reações viscerais”, “efeitos sobre os corpos” e “absorção emocional”. Hunt também mostra que Pamela inspirou paródias, poemas, adaptações teatrais, pinturas e gravuras, ou seja, conformou-se a outros meios e pôde circular por outros circuitos, eventualmente entre pessoas não letradas.
Qual a importância disso para a história que Hunt quer contar? Em A invenção dos direitos humanos ela sugere que, ao tornarem pública a dimensão da interioridade das personagens, os romances acionaram um mecanismo que ela chama de “empatia”, pelo que podemos entender o reconhecimento de semelhanças em sentimentos através das linhas de gênero e classe (no caso da França pré-revolucionária). Esse reconhecimento teria contribuído para modelar as sensibilidades à época, o que, segundo Hunt, deu-se graças a uma mudança de percepção em relação a outros desconhecidos mediado pelo livro e à forma como leitores passaram a representar esses outros desconhecidos para si em imaginação.
É desafiador mostrar empiricamente como a sensibilidade adquire ossatura histórica e como meios de comunicação participam nesse tipo de processo. Uma literatura muito conhecida, com nomes como Jürgen Habermas, Benedict Anderson, Robert Darnton e a própria Lynn Hunt, opta por analisá-lo tomando a imprensa e a circulação do livro como objeto, e o pensamento moderno está atrelado a esse tipo de suporte (como podemos perceber já por O que é Ilustração?, de Immanuel Kant). Isso não significa, porém, que sensibilidades não se modelem pela circulação oral de ideias e histórias, ou por outras formas estéticas. Minha impressão é de que em parte é mais viável trabalhar com material impresso em pesquisas sociológicas e históricas pelos rastros que ele produz. Seja como for, penso que Hunt indica um caminho, mas não chega a mostrar a contento como o fenômeno se dá. Creio que seu argumento fica mais claro considerando, com Jacques Rancière, que o romance apresenta uma reordenação do mundo e o epistolar, como afirma a própria Hunt, obscurece a autoria com a correspondência: ele desperta “sensação vívida de realidade”.
Podemos então resumir o argumento da historiadora ao seguinte: os romances Clarissa, Pamela e Júlia concorreram na formação de um chão para percepções e entendimentos compartilhados, o que teria sido fundamental para que os direitos humanos fossem inscritos no direito francês. Dando um passo adiante, Hunt propõe que a circulação dos livros foi importante na medida em que eles possibilitaram aos franceses imaginar a igualdade no calor da própria narração. Hunt não se detém nesse argumento, que ganha com a ideia de Rancière de que a ficção pode ter importância política pelo que empreende como ficção, e não como representação da vida social. É dizer que seus efeitos se produzem porque os leitores habitam o tempo dela, porque ela desfaz hierarquias entre formas de vida, desfia como as coisas poderiam ser, apresenta possibilidades e padrões de inteligibilidade concorrentes com os da realidade. Nessa linha, a leitura dos romances epistolares teria sido a experiência de uma igualdade – no caso, tocante a questões da intimidade – que propiciou o que Rancière chama de desentendimento da ordenação das coisas comuns, da posição das pessoas na comunidade, da partilha de posições e competências, abrindo espaço para uma nova ordenação.
Na época, essa reordenação encontrou limites no corpo feminino, na religião, no status de colônia. Hunt indica, mas não pensa criticamente esses limites. E de fato, como aponta Samuel Moyn[2], o que ela toma como um processo concernente aos direitos humanos se dá em escala nacional, ao passo que aquilo que hoje entendemos por direitos humanos tem no direito internacional uma sede de referência. Não obstante a pertinência dessas críticas, o livro de Hunt é iluminador a meu ver (i) por relacionar a modelagem de sensibilidades com a enunciação da ideia de liberdade e igualdade em direitos como sendo auto-evidente em um mundo em que tudo a desmentia e (ii) por lançar a ideia (empiricamente respaldada) de que a Declaração de 1789 abre todo um campo de desejos, demandas, encontros inimagináveis. Segundo Hunt, esse campo teria possibilitado a minorias dentro da França (como protestantes, judeus e pobres) e grupos fora dela (como escravos libertos no Haiti) pleitear igualdade em direitos sob o argumento de que se tratava do reconhecimento de práticas de autonomia já presentes na vida social.
Hunt busca mostrar que essa dinâmica foi se reiterando na história e implantou o que ela chama de “lógica dos direitos humanos”. Pensando com Michel Foucault, essa seria uma espécie de racionalidade constituída historicamente que abre a indivíduos a possibilidade de dar uma forma inteligível ao fato de que, como propõe Rancière[3], eles não contam entre os que contam. Hunt fornece elementos para pensar que a operação dessa lógica deflagrada pelo uso dos direitos humanos importaria em sucessivas reconfigurações do público e do privado, do humano e do cidadão.
Em uma configuração já muito diferente, com a inscrição dos direitos humanos em várias ordens constitucionais e no direito internacional, o laureado poeta irlandês Seamus Heaney abordou esse seu potencial em uma peça publicada no jornal The Irish Times por ocasião da comemoração aos 60 anos da Declaração Universal de Direitos Humanos, em 2008. Em sua peça, intitulada “Human rights, poetic redress”, Heaney escreve sobre o primeiro artigo da Declaração de 1948, aquele segundo o qual todos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. De partida, recupera uma afirmação de 1998 feita por Thomas Buergenthal, antigo presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, segundo a qual a Declaração, cujo caráter jurídico foi inicialmente ora ignorado, ora contestado, deu força moral aos direitos humanos. Tomando a fala de Buergenthal como ponto de partida, Heaney elabora sobre o desejo por outro mundo inscrito no artigo primeiro da Declaração e propõe tomá-lo como um convite a suspender a descrença em sua possibilidade. Um convite universal dirigido a imaginações particulares.
Um aspecto a considerar na peça de Heaney é que ele só pôde se lançar nessa empreitada em uma página de jornal, que é um meio de ampla circulação, porque em 2008 os direitos humanos eram uma linguagem usada além do mundo do direito e mesmo de espaços marcados pelo letramento. Isso significa que à época, como no presente, eles adquiriam sentido para além das instituições judiciais, das arenas jurídicas de um modo geral, dos seus usos táticos e estratégicos: eram uma linguagem usada por letrados e iletrados, religiosos e não religiosos, para falar do justo e do injusto, facilitando a produção de cenas que conjugam mundos apartados. É o que ocorre, por exemplo, quando performances dão o corpo à igualdade e voz àqueles que não contam entre os que contam. Nesta hipótese, formam-se quadros vivos e contingentes a partir da letra morta da lei, os quais podem operar pequenos abalos em práticas há muito constituídas.
Seu potencial de transformar essas práticas é, claro, incerto. Hunt permite pensar que, para uma transformação chegar a acontecer, é preciso que violações de corpos sejam consideradas inaceitáveis, desejos por autonomia sejam vistos como justos e aqueles que os manifestam sejam percebidos como iguais. No limite, a percepção de que certos sujeitos são iguais em direitos é parte da produção de uma igualdade, se pensarmos com Hunt, ou da desconstituição da desigualdade, se falarmos com Rancière. Já a sorte dos direitos humanos no Brasil ilustra o quão intrincada essa relação é.
O alerta que os sucessivos marcos fúnebres – das mil, das dez mil, das cem mil mortes por Covid-19 no país – disparou não encontrou eco em nossa sensibilidade, e os descaminhos dos direitos humanos entre nós não permitem que nos surpreendamos. Esses direitos têm sido contestados desde antes da reconstituição da democracia, nos anos 1980, e nunca chegaram a cair nas graças da sociedade brasileira, embora esforços por restringi-los também nunca tenham sido tão articulados quanto atualmente. Os termos de sua contestação – “privilégios de bandidos”, “cidadãos de bem”, “humanos direitos” – deixam ver que a igualdade é indesejada entre nós. Não é por acaso que temos uma das maiores populações carcerárias do mundo em números absolutos, e ela se encontra em prisões superlotadas. Cerca de quarenta por cento dos detentos não foram julgados; as ações demoram. Seria longa a lista das nossas misérias, mas talvez nada ilustre melhor o descaso com a desigualdade e a irresponsabilidade em relação à vida no Brasil do que o número de vítimas de mortes violentas intencionais, que é da ordem das dezenas de milhares ao ano todo ano e atinge desproporcionalmente jovens negros. Como um número, por maior que fosse, falaria por si a uma sociedade que convive com essa ordem de grandeza e essa forma de gestão da vida e da morte?
Nossa partilha acomoda diferenças na desigualdade, erotizando e estetizando a violência, como deixam ver figuras que povoam nosso imaginário[4]: a bicha bofe, a Maria sapatão, a mulata gostosa, a feminista cabeluda, o preto bandido, o macumbeiro que sacrifica animais, entre tantas outras. Trata-se, no final, de uma partilha da insensibilidade à violação daqueles que incluímos na cidadania sem transformar nossa relação com as diferenças, sem reconfigurar a comunidade para corrigir o que Rancière chama de erro de conta. Respostas à pandemia mostram que essas mudanças são urgentes e, claro, não decorrerão nem de ato de vontade, nem da inscrição de direitos humanos na ordem jurídica. Em contrapartida, uma literatura nos lembra, em momento de desalento, que os direitos humanos, a depender dos usos que fizermos deles, podem concorrer para instaurar um desentendimento acerca da ordenação da vida no Brasil, abrindo espaço a uma nova partilha do sensível, que passa por redistribuir recursos e posições no campo do visível e do inteligível a corpos a serem incorporados entre aqueles que contam.
Agradecimentos: Quero registrar, aqui, meus agradecimentos a Aramis Luis Silva, Daniel Aragão, Olívia Alves Barbosa e Victor Coutinho Lage, pelos comentários atentos, pertinentes e generosos, feitos em críticas construtivas, que me ajudaram a corrigir equívocos e calibrar argumentos do texto.
[1] Tradução de Rosaura Eichenberg, São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
[2] Substance, scale, and salience: the recent historiography of human rights, Annual Review of Law and Social Science, 2012, p. 123-140.
[3] O desentendimento: política e filosofia, tradução de Ângela Leite Lopes, 2ª ed., São Paulo: Editora 34, 2018.
[4] Agradeço a Aramis Luis Silva por me chamar a atenção para este ponto.
Renata Nagamine é pesquisadora (bolsista PNPD) e professora no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Ufba e pesquisadora no Cebrap. Email: renagamine@gmail.com. Currículo Lattes.