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Em meio a uma pandemia que persiste há mais de um ano, muitas agendas de pesquisa acabaram redirecionadas para dar conta das emergências que se impuseram à vida humana. Contudo, para aqueles que nunca se convenceram da normalidade de antes ou da ilusória estabilidade da ordem pré-COVID19, a crise atual só elucidou dinâmicas e preocupações que já há muito tempo fazem parte do cotidiano de diferentes indivíduos e grupos. Uma dessas dinâmicas está relacionada a poder transitar livremente pelo espaço e pertencer a ele. De um lado, o direito de ir e vir, que tem estado em pauta por conta da necessidade de políticas de isolamento social. De outro, a experiência de diferentes corpos em serem percebidos ou não, em serem acolhidos ou expulsos e bloqueados, em sentirem o impacto de barreiras visíveis ou invisíveis à sua presença e expressão em determinados lugares.
Recentemente, no final de março de 2021, sugeriram que talvez o meu interesse pelo ‘fora de lugar’ venha da minha própria condição um pouco errante nas Relações Internacionais, devido tanto à minha formação interdisciplinar quanto à falta de raízes e aos vínculos institucionais temporários. A partir de um ponto de vista até muito privilegiado, minha trajetória é de quem vem se construindo e reconstruindo diversas vezes numa tentativa de dar sentido à sua presença ‘estrangeira’. Na ocasião em que propuseram tal reflexão, eu debatia um rascunho desse novo projeto sobre corpos latinxs e resistência com colegas e amigos da Virginia Tech – a instituição onde fiz meu doutorado – enquanto estava isolada no Rio de Janeiro, cumprindo minhas funções como professora da Queen’s University Belfast, na Irlanda do Norte. Nessa condição ‘estrangeira’ que leva a uma busca incessante por uma sensação de conforto e segurança, geralmente conquistada ao sermos vistos, ouvidos e compreendidos, eu frequentemente acabo me rendendo ao cansaço. Esses momentos amplificam minha percepção sobre a maneira como o ‘não pertencimento’ e o ‘não acolhimento’ pode afetar brutalmente a experiência de pessoas que trazem em seus corpos e histórias marcas que se apresentam antes delas mesmas e frequentemente mediam suas relações com a sociedade em que vivem.
Quando eu me deparo com lamentações de pessoas temporariamente privadas de irem ao shopping ou à praia devido às medidas restritivas impostas para controlar a disseminação do coronavírus, eu me lembro dos anos 2000. Naquele momento, moradores de rua e de comunidades periféricas no Rio de Janeiro e em São Paulo foram duramente criminalizados por decidirem ‘dar uma voltinha’ em diferentes centros comerciais frequentados pela classe média alta. Algo que para muitos inicialmente era expresso como simples desejo de conhecer o shopping, para outros naturalmente foi se tornando uma forma de protesto e resistência. Apesar da ausência de justificativas para o impedimento da circulação dessas pessoas nos shoppings, muitas portas se fechavam com a chegada desses grupos e o policiamento passou a ser desproporcionalmente reforçado. Esse cenário contrasta com a forma com que prefeitos e governadores no Rio de Janeiro se orgulhavam em dizer que as favelas estavam finalmente abertas à população depois de 2010, quando corpos brancos passaram a poder ser escoltados e guiados em suas visitas a comunidades “pacificadas” do Rio de Janeiro.
De Certeau (1984) compara o ato de andar ao ato de fala, ao discutir suas funções enunciativas. Segundo ele, “andar afirma, suspeita, experimenta, transgride, respeita etc., as trajetórias que [o andar] fala” (p.99). Tais performances corporais não só inscrevem textos nos mapas urbanos como relevam cursos, destinos e histórias múltiplas em suas repetições e pausas. Nesse sentido, podemos ampliar o entendimento de legibilidade para incluir traços de outras formas de ser no mundo que são persistentemente invisibilizados para que as linhas dos mais variados mapas permaneçam intactas. O que é intrigante sobre esses processos de invisibilização social sobre os quais a ilusão de normalidade invariavelmente se debruça é que tais corpos, via de regra gendrados e racializados, já se encontram nessa condição de serem ‘sempre já muito visíveis’, porém ignorados quando postos ‘em seu devido lugar’. Processos de invisibilização e excesso de visibilidade estão intrinsecamente atrelados, uma vez que a administração do espaço requer a administração dos traços, aparências e movimentos rotineiros que dão significado a esses espaços. Com isso, potenciais desvios são usualmente submetidos a uma ‘correção de rota’ por excederem o mapa. Para Rancière (2004), a política “acontece ao redor do que é visto e o que pode ser falado sobre o que é visto” (p.8), o que elucida um contraste entre o que poderíamos chamar de corpos muito ‘leves’ e corpos muito ‘densos’. Enquanto o primeiro grupo consegue navegar livremente e se confundir com o espaço que ocupa e que lhe pertence, o segundo grupo, assim como pregos que se destacam ou se encontram ‘fora de lugar’, torna-se alvo fácil de marteladas.
Em relação a essa complexa dinâmica entre visibilidade física e invisibilidade social, o conceito de “viscosidade” proposto por Arun Saldanha entrou para o meu repertório há pouco tempo, ao passo que ajuda a explorar como “movimentos […] não podem ser bem avaliados a menos que sejam entendidos em seus efeitos virtuais” (p.52), ou seja, em relação ao que torna possível. Partindo dessas explorações mais gerais sobre o campo do visível e do invisível, eu pretendo investigar as relações entre visibilidade e resistência, e particularmente a mobilização de corpos como forma de resistência política. Como podemos entender essa condição na qual indivíduos e coletividades são tão ‘visíveis’ enquanto corpos que se tornam alvos fáceis de força policial e militar ao mesmo tempo em que lutam para serem vistos e sentidos enquanto sujeitos políticos capazes e merecedores de suas próprias trajetórias? Como pensar a relevância dos afetos e de outras faculdades sensoriais na análise da resistência que evite a reificação da existência meramente corpórea de sujeitos gendrados e racializados?
A pandemia adicionou camadas extras de precariedade e vulnerabilidade a esses processos de resistência corporificada que almejam a desestabilização de sistemas opressivos por meio da ocupação de espaços e redefinição de mapas e fronteiras. Minha preocupação inicial ao desenvolver essas indagações é que tais tipos de movimentos de resistência também levam a um nível de exposição e visibilidade que talvez seja menos potência do que sintoma da condição ‘des-locada’ de alguns em relação às representações dominantes de espaço, sujeitos e lugares. Em outras palavras, esses corpos tornam-se visíveis a partir do momento em que excedem o mapa, e porque excedem o mapa, conquistam sua visibilidade nessa condição de ‘fora do lugar’.
A precaridade de corpos latinxs em resistência, femininos ou feminizados particularmente, nos é lembrada no contexto da greve organizada para o dia 08 de março de 2020, quando Anette Eklund afirmou do México um dos populares slogans do movimento feminista na América Latina: “eu existo porque eu resisto” (Vida, 2020). O que pretendo avaliar melhor com esse projeto é o quanto essa visibilidade vinculada ao deslocamento impõe limitações para que superemos a separação artificial entre sujeitos políticos, pensantes e tomadores de decisão de um lado e sujeitos cujas experiências e trajetórias acabam profundamente e visivelmente marcadas no corpo do outro lado. Em outras palavras, o quão audível o visível consegue se tornar? Os corpos falam, mas isso não quer dizer que a mensagem desses corpos consegue atravessar as camadas densas de textos inscritos previamente neles. Como Foucault (1979) dizia, “a visibilidade é uma armadilha”, e a textura de invisibilidade (invisibilização) conferida à subalternidade pode ser bem complicada na medida em que o ‘Outro’ se torna prisioneiro de sua posição enquanto ‘Outro’ para ser reconhecido.
Em seu livro The Story of Colour, Gavin Evans investiga o papel da linguagem e da cultura na forma como enxergamos e usamos as cores. Análises históricas e interações com diferentes comunidades demonstram que nossa capacidade de perceber determinadas cores e tons pode ser influenciada por práticas particulares de identificação da diferença e nomeação das variações da diferença em um espectro. Há algum tempo, minha curiosidade sobre as variadas maneiras pelas quais nossas experiências da realidade são mediadas tem permeado os questionamentos que compartilhei aqui. Ao falar de visibilidade e resistência, eu quero estar atenta pra duas coisas: a primeira delas é a tendência ao ocularcentrismo que herdamos da filosofia europeia[1], e a segunda é a ilusão de que enxergamos o que vemos. A primazia da visão torna muitos de nós analfabetos da linguagem para além dos textos e pouco questionadores sobre o que vemos, como vemos e por que vemos. Eu diria que existe mais coisa entre a aparência (e aparição) das formas materiais/físicas e a forma como experimentamos o mundo do que é tangível aos nossos sentidos. Se cultura e linguagem afetam a capacidade de grupos inteiros de identificar cores que seriam facilmente identificadas por outros grupos, como Gavin Evans mostra, o que será que não estamos vendo? O que tem escapado a minha/nossa cognição e limitado meu/nosso discernimento sobre o que é real e o que é o possível?
Eu já vi algumas pessoas traduzindo a palavra em inglês para intimidade em into-me-see (ver dentro de mim). Desde então, entendi um pouco mais por que muitos de nós vivemos tão angustiados em sociedades que domesticam o corpo e idolatram o individualismo. Como os nossos olhos não recebem mais do que luz como informação, talvez as armadilhas da visibilidade e invisibilidade comecem pela nossa cada vez mais escassa caixa de ferramentas simbólicas e afetivas. Seria essa escassez que nos impede uma mais rica tradução dos estímulos que recebemos em imagens e significados com os quais poderíamos reinterpretar nosso passado e futuro? Enquanto formos incapazes de enxergar mais cores, desenhar mapas alternativos e libertar o ‘possível’ nos nossos imaginários, teremos que seguir problematizando e combatendo a forma como corpos feminizados e racializados se tornaram telas para projeções cruéis e preconceituosas.
Talvez a precariedade da condição errante possa afinal ser uma bênção para aqueles que não se ‘disciplinaram’ no internacional ainda, uma vez que a experiência de estar fora do lugar potencialmente amplia nossos repertórios e nos proporciona uma visão alternativa das coisas.
Referências
CERTEAU, Michel de. The Practice of everyday life. Berkeley: University of California Press, 1984.
EVANS, Gavin. The Story of Colour. An Exploration of the Hidden Messages of the Spectrum. Michael OMara, 2017
FOUCAULT, Michel. Discipline and Punish. The Birth of Prison. Translated by Alan Sheridan. New York: Random House, 1979.
RANCIÈRE, Jacques. The Politics of Aesthetics. Translated by Gabriel Rockhill. London: Bloomsbury, 2004.
SALDANHA, Arun. Psychedelic White. Goa Trance and the Viscosity of Race. University of Minnesota Press, 2007.
VIDA, Melissa. In photos: #8M throughout Latin American. Women from the Global Voices community share their photos, GlobalVoices.org. Disponível em: https://globalvoices.org/2020/03/09/photogallery-8m-throughout-latin-america
[1] Como exemplo da influência da primazia da visão no nosso vocabulário, a palavra teoria tem origem etimológica na expressão grega theōria (substantivo), cujos significados inclui “coisas vistas”.
* Francine Rossone é doutora em Pensamento Social, Político, Ético e Cultural pela Virginia Tech (Estados Unidos), com concentração em pensamento político e cultural. Possui Graduação e Mestrado em Relações Internacionais pela PUC-Rio.