Imagem de uma fita de Möbius.


Modernidade: um conceito escorregadio distinguindo uma época histórica, inicialmente a Europa pós-Renscimento, de outras épocas históricas e caracterizando os traços culturais, sociais e políticos específicos, porém menos geográfica e historicamente determinados, dessa época. Estes usos do termo, feitos por historiadores(as) e teóricos(as) sociopolíticos(as) respectivamente, são com frequência reduzidos a um sentido mais popular de se estar “atualizado” (“up to date”) ou são suplementados por referências a formas específicas de estilo estético. Vastas literaturas explorando todas estas direções são geralmente guiadas por conceitos e pressuposições que são eles próprios caracteristicamente modernos.

A despeito das objeções de muitos(as) historiadores(as), o significado deste conceito é em parte definido por negações absolutas, pelo que supostamente não é: medieval, clássico, tradicional, passado; algo mais “natural,” “encantado” ou “pré-moderno.” Neste sentido, “modernidade” pode então afirmar a superioridade de algumas sociedades sobre outras; embora tal suposição possa ser invertida, como por Jean-Jacques Rousseau e em tensões posteriores entre um Iluminismo universalizante e um Romantismo pluralizante. A distinção histórica dúbia entre modernidade e seus diversos outros é assim reproduzida dentro do ordenamento social, cultural e político da própria modernidade, como em distinções entre raciocínio e sentimento, objetividade e subjetividade ou natural e artificial. Dualidades mutuamente constitutivas são remodeladas em dualismos polarizados, tanto interna quanto externamente. Este é especialmente o caso quando a história e o caráter da modernidade são abordados com referência a uma ordem política internacional.

A modernidade é também em parte definida em termos de uma ampla gama de atributos positivos, embora leituras negativas destes possam uma vez mais ser identificadas, juntamente com a estruturação das relações entre positivo e negativo como polaridades absolutamente diferenciadas, mas também reversíveis. Assim, a maioria dos relatos (accounts)da modernidade presume e por vezes tem muito a dizer sobre uma cisãocada vez mais radical (renascentista ou científica) entre a humanidade e o mundo ou a natureza no(a) qual ela todavia vive. Isto vem em paralelo a análises da secularização, bem como a uma alteração em direção a internalizações de um Deus protestante nos seres humanos individualizados, em vez da subordinação hierárquicados seres humanos a um Criador eterno. Tais relatos levam tipicamente a observações sobre o statusde sujeitos autodeterminadores, subjetividades autoconscientes e comunidades autodeterminadoras e, portanto, sobre relações problemáticas (liberais, socialistas, nacionalistas) entre indivíduos e sociedades, e entre conceitos de liberdade, igualdade e segurança.

Do ponto de vista filosófico, estes relatoslevam à primazia de teorias do conhecimento, ou epistemologia, o problema de saber como sabemos (the problem of knowing how we know) livres de fé ou entendimentos essencialistas das qualidades inerentes das coisas. A emergência do raciocíniocientífico expõe especialmente muitas outras formas características identificadas à modernidade. Estas incluem uma distinção entre forma e substância (Estados formalmente soberanos contendo governos, sociedades e nações substantivos [substantive]), e as duplas distinções entre (i) o mundo em si e o mundo tal como cognoscível a sujeitos humanos (human subjects) e (ii) entre o mundo finito e imanente habitado pela humanidade e o mundo infinito ou transcendente em algum lugar além. Estas são as distinções articuladas por Immanuel Kant na Crítica da Razão Pura, com frequência considerada a expressão arquetípica das possibilidades e limites do pensamento moderno, mas, pode-se dizer também, de uma ordem política internacionalizada moderna.

Algumas caracterizações privilegiam entendimentos novos de espaço e tempo como conceitos, juntamente com o caráter espacializado de conceitos de tempo e, portanto, conceitos de uma história (history) linear em algum lugar entre uma estória (story) de origem (um telos, uma mitologia, um momento presente entendido como um “estado de natureza”) e um destinoou fim dos tempos (uma escatologia, uma utopia, um apocalipse). Algumas se focam mais na formalização de distinções entre línguas e seus referentes, tal como no ataque nominalista de Thomas Hobbes aos essencialismos qualitativos e teológicos, bem como na sua análise da autoridade política, e da justiça, sob lei soberana em vez de sob lei divina/natural ou decreto pessoal. Outros, como Max Weber, privilegiam processos de racionalização, previsibilidade, cartografia geométrica e distirbuição estatística, juntamente como suas normalizações e suas consequências enquanto limites, exceções e transgressões; e/ou, seguindo Marx, processos de racionalização e alienação especificamente capitalistas em economias em vias de industrialização e mecanização.

Aqueles(as) que se concentram nas fases iniciais da modernidade tendem a chamar atenção para suas formas espacializadas e, portanto, estáticas de contensão e cercamento (enclosure) que podem ser entendidas historicamente. Aqueles(as) que se concentram em suas articulações subsequentes tendem a identificar uma cultura que opera através de um apelo específico à própria História como um processo de modernização, desenvolvimento, evolução, progresso e emanciapação. Ao passo que Hobbes pôde imaginar o Estado espacializado como a solução de todos os problemas políticos, pensadores(as) pós-kantianos(as) puderam imaginar a História como uma opção ainda melhor para a realização da liberdade humana. Ambas as variações da relação entre espacialidade, temporalidade e subjetividade humana atraem hoje críticas generalizadas, seja pela sua presunção paroquial seja por sua insustentabilidade existencial.

A relação entre modernidade e relações internacionais é mais facilmente compreendida nos entendimentos compartilhados acerca do que ambas não devem ser: um processo de ordenação vertical da humanidade e do mundo sob uma concepção imutável de autoridade fundamentada em Deus, Papa ou Imperador. A liberdade para mobilizar a criativiade humana no tempo à maneira de Maquiavel ou a simples afirmação da igualdade radical de ao menos alguns seres humanos em um terreno plano e horizontal, à maneira de Hobbes, marcam uma alteração significativa, embora historicamente obscura, no ordenamento político. Esta alteração ainda estava em jogo quando a Guerra de 1914-1918 finalmente destruiu muitos outros impérios, permitindo que reinvidicações acerca dos princípios caracteristicamente modernos de autodeterminação nacional e não-intervenção atraíssem ao menos um apelo retórico enquanto fundamento comum para a humanidade, tanto no geral quanto no particular.

Neste sentido, a ordem internacional moderna pode ser entendida como a solução principal para o maior problema advindo da consolidação (moderna) de uma concepção de humanidade como distinta de maneira absoluta, porém ambivalente, de um mundo “natural” ou uma ordem social “tradicional.” À questão de como orquestrar tanto uma humanidade no geral quanto muitos seres humanos politicamente qualificados no particular, o internacional moderno sugere, em princípio: um sistema, muitos Estados e, portanto, muitos(as) cidadãos(ãs); mas também muitos indivíduos e, portanto, muitos(as) cidadãos(ãs) capacitados a viver apropriadamente como sujeitos livres e iguais sob leis soberanas de Estado; e, portanto, uma humanidade, a soma total de sujeitos de Estado (statist subjects) vivendo ambivalentemente entre lei estatal e lei internacional, e precariamente entre solidariedades domésticas e violência interestatal (inter-statist). Esta resposta gera padrões familiares de esperança e desespero, mas talvez a questão inicial seja aquilo que exija uma atenção maior e mais persistente.

* R. B. J. Walker é Professor Emérito da Universidade de Victoria (UVic), no Canadá.


[1] Este texto foi publicado originalmente como capítulo, intitulado “Modernity”, na Elgar Encyclopedia of International Relations, editada por Beate Jahn e Sebastian Schindler (Edward Elgar Publishing Limited, 2025, p.255-6). Agradecemos imensamente à editora, em especial a Stephanie Moore, pela autorização concedida para a publicação do texto em português, e a R.B.J. Walker, pela anuência e apoio à iniciativa, bem como pelas observações sobre algumas das escolhas feitas na tradução. Tradução feita por Joanna de Vasconcelos Cordeiro e Victor Coutinho Lage. Os termos mantidos em inglês se refere àqueles utilizados no original.


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