Foto de The Humantra, disponível em: https://www.pexels.com/pt-br/foto/preto-e-branco-p-b-cruzamento-travessia-13516203/. Acesso em 07 de maio de 2024.


Este fórum editado pelo erRante – o Internacional fora de lugar foi uma excelente ocasião para consolidar diálogos existentes ao longo dos últimos anos com Luciana Martinez, Matheus Souza e Andrea Peres. Por meio de suas cuidadosas leituras e generosas análises acerca de meu livro, pude refletir sobre o cruzamento de nossas pesquisas, bem como sobre perguntas, práticas e paixões compartilhadas.

O engajamento de Luciana, Matheus e Andrea provocou e proporcionou renovadas reflexões sobre questões que me assombram, mas também me movimentam há tantos anos. Somados a uma série de acontecimentos recentes na Bósnia-Herzegovina e na região, que se produziram após a publicação do livro, as análises dos três autores proporcionam uma oportunidade de refletir sobre o texto à luz do que sabemos hoje, em 2024.

Em 2023, tive a oportunidade de regressar à Bósnia em duas ocasiões depois de um longo hiato, causado pela distância entre o meu então local de residência, Rio de Janeiro, e o país em questão e, sobretudo, por uma pandemia que se prolongou para além de qualquer período imaginável em nossa racionalidade do início de 2020. A pandemia atingiu severamente a Bósnia, que registrou uma das maiores taxas de mortalidade causada pela Covid-19 no continente europeu. Além disso, durante esse período, as notícias que chegavam do país eram um tanto desoladoras.

Primeiramente, em 2021, um recrudescimento de retóricas ultranacionalistas frente ao projeto de criminalizar o negacionismo do genocídio perpetrado em Srebrenica, em 1995. De fato, o episódio não apenas revelou as múltiplas fraturas da sociedade e o desafio da construção de uma memória histórica compartilhada, como expôs novamente os traumas das gerações que vivenciaram a guerra dos anos 1990. A palavra ‘guerra’ não era usada apenas para descrever os eventos de um passado recente, mas pairava como ameaça de um futuro próximo: figurava nas capas dos jornais, nas redes sociais, nas ruas da cidade, de acordo com relatos que chegavam a mim. A ameaça de um desmembramento da Bósnia-Herzegovina em duas ou três partes continua sendo usada como recurso de recrudescimento nacionalista.

O ataque russo contra a Ucrânia, a partir do início de 2022, também afetou a região. Conhecidos e interlocutores que sofreram a guerra da Bósnia disseram que o evento os re-traumatizou. Por um lado, havia as notícias dos acontecimentos na Ucrânia, e uma identificação com o cotidiano de medo, violência e deslocamento. Por outro lado, a certeza da paz frágil, o temor recorrente de que pode acontecer de novo.

Em seu texto sobre o meu livro para este Fórum, Andréa Peres sugere que talvez minha análise sobre o cotidiano e práticas de fronteirização em cidades bósnias seja mais otimista do que a dela. Passados alguns anos da finalização do livro – e com as visitas recentes realizadas, e cerca de 30 novas entrevistas concluídas –, talvez o ‘otimismo’ venha se desvanecendo. As notícias de jovens que decidem deixar a região se multiplicam. O recrudescimento da extrema-direita e o fiasco da política europeia são palpáveis. Como argumenta um de meus interlocutores[1]: “Faz trinta e um anos que a Bósnia está em transição… parece um pouco demais, não é mesmo? Já acabou. É isso o que temos”.

No entanto, o país continua também a ocupar um lugar privilegiado no imaginário do retorno para muitas das pessoas deslocadas durante a guerra, seguidas por um fluxo de pessoas que vão sobretudo para a Europa Ocidental em busca de trabalho ou melhores condições de vida. Este, porém, é tema para uma nova pesquisa, cujo resultado espero poder apresentar no futuro próximo.

* Renata Summa é Professora Assistente no departamento de Relações Internacionais da Universidade de Groningen (Holanda). É doutora em RI pela PUC-Rio. Foi pesquisadora de pós-doutorado na PUC-Rio e no Instituto de Estudos Avançados de Nantes (França), além de pesquisadora visitante na Open University (Reino Unido) e na Universidade de Graz (Áustria). É co-fundadora da Rede Brasileira de Sociologia Política Internacional e organizadora sênior da Rede IPS Holanda. É autora de Everyday Boundaries, Borders and Post-Conflict Societies, Palgrave (2021). E-mail: r.de.figueiredo.summa@rug.nl | Currículo Lattes


[1] Entrevista com V. C em Saint Nazaire, França, em 24 de janeiro de 2023 (trecho traduzido por mim, do francês).


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