Foto de The Humantra, disponível em: https://www.pexels.com/pt-br/foto/preto-e-branco-p-b-cruzamento-travessia-13516203/. Acesso em 07 de maio de 2024.
Como transcorre a vida em sociedade uma vez que os tratados de paz são firmados, as armas são formalmente depostas e os holofotes da mídia internacional, transferidos para uma nova guerra? Como o legado de conflitos se faz presente no cotidiano de cidades que se tornaram verdadeiros fronts de guerra, em que vizinhos foram declarados inimigos e muitas vezes foram identificados entre os algozes e, agora, são considerados novamente vizinhos? Por quais transformações passa uma cidade em que parte expressiva da população deixou suas casas para nunca mais retornar ao mesmo tempo em que grupos de pessoas deslocadas de outras cidades e vilarejos passam a habitá-la? Como entender conflitos que foram travados a partir da mobilização de retóricas, símbolos e imaginários etnonacionais e que deixaram como legado a etnicização não apenas da política, mas também dos espaços urbanos e das práticas cotidianas?
Foi com essas questões em mente que me lancei ao desafio de entender as dinâmicas contemporâneas de produção de fronteiras e de categorizações – ora persistentes, ora efêmeras e cambiantes – em locais da Bósnia-Herzegovina. Este país é retratado como um exemplo atípico de comunidade política, constituído por uma pluralidade de comunidades nacionais e que reivindicava sua singularidade justamente no entrelaçamento de diferentes grupos e de seus legados culturais. Desta forma, o país é frequentemente apresentado como lugar de encontro de culturas, religiões e mesmo do ‘Oriente com o Ocidente’, posição esta que está demarcada em uma rua central de sua capital, Sarajevo, também rotulada como ‘a Jerusalém da Europa’. O visitante que chega a Sarajevo invariavelmente será informado sobre as peculiaridades da cidade, na qual uma catedral católica, uma igreja ortodoxa, uma sinagoga e uma mesquita foram erguidas no intervalo de poucos metros. Enquanto estes traços são reivindicados pela música e literatura e exortados por guias de turismo e personalidades locais, eles são também apontados como elemento desestabilizador, num imaginário político que associa prontamente a diferença à desordem e ao conflito. Este imaginário informou as práticas da comunidade internacional ao longo dos quatro anos de guerra (1992-1995) e no período do pós-guerra na Bósnia-Herzegovina, reforçando a ideia de que sérvios, croatas e bosniaks são essencialmente diferentes e, portanto, estariam melhor vivendo em espaços separados. Sendo assim, não é surpreendente que os diversos planos de paz formulados por países ocidentais para a Bósnia-Herzegovina ao longo da guerra envolviam, de alguma maneira, a redefinição de fronteiras externas ou de traçados de linhas e reorganização interna do território do país.
De fato, as fronteiras são frequentemente consideradas tanto causa quanto solução para as guerras. Como tais, elas ganham atenção especial nas mesas de negociação e acordos de paz, onde frequentemente são analisadas, traçadas ou redesenhadas. As demarcações em mapas oficiais também são respaldadas, em muitos casos, por exercícios cotidianos de vigilância e patrulha por forças militares, paramilitares ou mesmo civis. Sob justificativas securitárias, elas ganham especial proeminência em sociedades pós-conflito, nas quais o anseio pela paz se traduz no retorno a uma “vida normal”. Nestes casos, fronteiras e linhas de demarcação, cercas e muros são frequentemente apresentados como instrumento de segurança fundamental para a consolidação do cessar-fogo e da mitigação de conflitos. O resultado dessas políticas, no entanto, tem sido a multiplicação de práticas de fronteira no cotidiano, produzindo uma série de segregações, empecilhos e rupturas que, ao mesmo tempo em que esgarçam o tecido social e transformam o espaço urbano, tornam a vida cotidiana dessas cidades bastante distante do “normal” ao qual estavam acostumados antes do conflito.
Atento a essas dinâmicas, o livro Everyday Boundaries, Borders and Post Conflict Societies (2021) se interroga sobre o papel desempenhado pelas fronteiras em sociedades pós-conflito, buscando entender como elas são produzidas, reproduzidas, desafiadas e deslocadas pela comunidade internacional, pela elite política e pelos cidadãos comuns. Embora fronteiras tenham sido reivindicadas como instrumentos fundamentais durante e no pós-conflito – justificando, como já mencionado, a construção de muros e cercas “para garantir a paz” –, o livro argumenta que a produção de fronteiras e demarcações acontece também em locais bem distantes das fronteiras formais, impulsionada por uma multiplicidade de práticas e atores. No entanto, podemos observar também tantas outras práticas que são realizadas no sentido de embaralhar ou resistir a essas tentativas de demarcação rígida e, por vezes, violenta. Assim, o livro se distancia de visões de mundo primordialistas, que defendem a existência de grupos histórica e claramente demarcados entre si, argumentando que as demarcações de diferença e, especialmente, de inimizades, foram produzidas sobretudo durante e pelos conflitos armados. Da Bósnia-Herzegovina à Irlanda do Norte, da Croácia ao Chipre, podemos observar que a prática da guerra reforçou, quando não produziu, novas formas de demarcações violentas, que foram frequentemente institucionalizadas durante ou após os conflitos até mesmo pelos próprios acordos de paz.
A etnicização da política, nesses casos, ocorre com certa frequência, sendo verificada por meio de partidos políticos e do próprio desenho constitucional que acaba favorecendo esse tipo de cenário. O livro, no entanto, se propõe a analisar essa produção de fronteiras em lugares onde elas aparentemente seriam menos institucionalizadas e para além da esfera política formal. Tomando o cotidiano como um campo relevante de análise, o livro busca identificar práticas de produção e deslocamento de fronteiras em locais aparentemente banais e apolíticos. A escolha do cotidiano como abordagem metodológica é uma tentativa de fornecer um relato mais dinâmico da maneira como essas fronteiras são produzidas, em contraste com aquele oferecido pela análise dos tratados de paz ou do sistema politico inaugurado no país a partir desses acordos. Ao olhar para o cotidiano, o livro argumenta, é possível compreender a efemeridade dessas práticas e também identificar rachaduras nas mais rígidas estruturas.
O livro baseia-se em uma pesquisa que realizei na Bósnia-Herzegovina por meio de múltiplas visitas ao país entre 2014 e 2017, durante as quais conduzi trabalho de campo, no total, por cerca de seis meses na capital, Sarajevo, e na cidade de Mostar. Por meio de entrevistas e observação, mas também da constituição e análise de um material amplo e heterogêneo (que compreende literatura, documentários, programas humorísticos, entre outros documentos), eu busquei entender o papel dos lugares cotidianos na produção, reprodução e no deslocamento dessas fronteiras. Praças, cafés, estações de ônibus, escolas e shopping centers revelaram-se, nesse sentido, cruciais para entender como se dão processos de identificação e alteridade, ora aparecendo como linhas rígidas e amplamente consolidadas, ora revelando-se efêmeras e sendo contornadas ou minimizadas em encontros cotidianos. Ao longo da pesquisa, deparei-me com uma série de táticas adotadas por moradores desses locais que desafiam a lógica etnonacional. Há, por exemplo, quem cruze linhas de demarcação formais ou informais diariamente, muitas vezes alegando não levar em conta o que definem como uma insensatez. Há também quem prefira silenciar determinados assuntos e evitar que suas lojas ou serviços sejam associados a uma determinada comunidade. Há ainda quem esconda sua história e se passe por alguém de outra comunidade. De todo o modo, a coexistência e convivência nesses locais se sustenta por meio de um equilíbrio delicado entre o dito e o silenciado e pelo movimento entre determinados locais e espaços em detrimento de outros.
Em determinados casos, há uma tentativa de resistir à etnicização dos espaços urbanos pela própria criação de locais de coexistência, como em alguns cafés da cidade de Mostar. Nesses lugares, seus frequentadores se apoiam no passado pré-guerra – muitas vezes apresentado de maneira idílica como um tempo sem conflitos quando todos conviviam – para reivindicar uma cidade menos segregada. Há também lugares onde essas práticas tomam forma de maneira mais efêmera, como dentro do banheiro de uma importante escola de Mostar, ou em uma de suas praças centrais – que ora se torna palco de eventos artísticos e marchas pacifistas, ora é ocupada por ultras e torcedores de futebol violentos a favor da divisão da cidade.
Entremeados às dinâmicas cotidianas de cidades como Sarajevo e Mostar encontram-se também funcionários de organizações internacionais que agem como representantes da comunidade internacional, muitas vezes sendo denominados “internacionais”. A partir de lugares como cafés, praças e shopping centers, esses funcionários ajudam a produzir o cotidiano da cidade, cotidiano esse que muitas vezes é classificado como “local”, mas que se revela terreno fundamental para a produção de normas e práticas internacionais. Desta forma, o livro busca analisar não apenas as dinâmicas de fronteira produzidas por clivagens etnonacionais mas também como, no cotidiano, as distinções entre “local” e “internacional” são frequentemente embaralhadas.
A Bósnia-Herzegovina foi alvo de uma enorme atenção midiática internacional durante a guerra dos anos 1990 e também da comunidade internacional, por meio de operações de paz, práticas de statebuilding, financiamentos, doações e ambiciosos programas de governança. Mais de 25 anos após a assinatura dos acordos de paz, a Bósnia continua se denominando e sendo tratada como uma ‘sociedade pós-conflito’. Um mergulho no cotidiano de duas de suas cidades nos revela como os legados da guerra se tornaram fatores constitutivos e estruturante das esferas públicas e privadas.
* Renata Summa é Professora Assistente no departamento de Relações Internacionais da Universidade de Groningen (Holanda). É doutora em RI pela PUC-Rio. Foi pesquisadora de pós-doutorado na PUC-Rio e no Instituto de Estudos Avançados de Nantes (França), além de pesquisadora visitante na Open University (Reino Unido) e na Universidade de Graz (Áustria). É co-fundadora da Rede Brasileira de Sociologia Política Internacional e organizadora sênior da Rede IPS Holanda. É autora de Everyday Boundaries, Borders and Post-Conflict Societies, Palgrave (2021). E-mail: r.de.figueiredo.summa@rug.nl | Currículo Lattes
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