Foto de The Humantra, disponível em: https://www.pexels.com/pt-br/foto/preto-e-branco-p-b-cruzamento-travessia-13516203/. Acesso em 07 de maio de 2024.
Dentro do campo de estudos sobre paz e conflito, o termo ‘cotidiano’ tem sido empregado em diversas obras acadêmicas dedicadas a prover um melhor entendimento das relações sociais em áreas afetadas pela violência armada. A principal fonte de inspiração desse movimento tem sido a ‘virada local’, que sugere análises meticulosas de microdinâmicas ocorrendo em escala local (e.g. MAC GINTY; RICHMOND, 2013; LEONARDSSON; RUDD, 2015). Apesar das substantivas contribuições da geografia crítica para compreender a vida cotidiana em sua complexidade (e.g. DE CERTEAU, 1984; LEFEBVRE, 1991), o campo de paz e conflito pouco tem teorizado sobre o cotidiano[1], e o termo tem sido comumente empregado como equivalente ao local, mundano e comum. Limitar o cotidiano ao seu sentido semântico, por sua vez, contribui para uma utilização imprecisa que alude – e confina – o cotidiano às dinâmicas essencialmente locais (RANDAZZO, 2016). Contra este pano de fundo, a obra de Renata Summa (2021), Everyday Boundaries, Borders and Post Conflict Societies, considera o cotidiano em sua multiplicidade e complexidade teórico-empírica.
Chave para a proposta desenvolvida no livro é a ideia de que o ‘cotidiano’ não é sinônimo de interações localizadas que se colocam em oposição às escalas nacionais e globais. Nesse quesito, inspirada por Lefebvre (1991), a autora propõe que o cotidiano em cidades afetadas por conflitos armados seja estudado como um ‘todo conectado’, ou seja, um ‘lugar de encontro’ entre atividades da alta política e atividades locais (SUMMA, 2021, p. 56) que são negociadas, desafiadas e/ou acomodadas nas relações sociais. Esse encontro de atividades distintas é explorado no caso da Bósnia e Herzegovina de maneira a evidenciar a multiplicidade de interpretações sobre as demarcações espaciais colocadas em vigência pelo Plano Cutilero (1992), Plano Vance-Owen (1993), Plano do Grupo de Contato (1994) e finalmente concretizadas no Acordo de Dayton em 1995. Como nos mostra a autora, essas iniciativas acomodaram e legitimaram diversas divisões territoriais produzidas durante a guerra devido às estratégias de limpeza étnica colocadas em prática (SUMMA, 2021).
Neste texto, discuto a diferenciação feita no trabalho de Summa (2021) entre borders e boundaries[2], para explorar precisamente a segunda categoria como uma importante entrada analítica para entender a diversidade da vida cotidiana em áreas afetadas por guerras. A autora trabalha com uma conceituação tradicional de borders e as associa à territorialidade de Estados nacionais, como equivalente às fronteiras internacionais que separam comunidades políticas independentes. Boundaries, por sua vez, são uma “categoria mais ampla, que pode ser definida como práticas de demarcação e diferenciação espaço-temporal, que podem ou não implicar delimitações geográficas, podem ou não ser amparadas por regulamentos administrativos ou legais e podem ou não ser expressas materialmente” (SUMMA 2021, p. 22, tradução minha). De que maneira o conceito de boundaries (e sua diferenciação e conexão com a ideia de borders) contribui analiticamente para o estudo de sociedades pós-conflito? Discuto a seguir três reflexões provocadas pela leitura do livro, com ênfase no capítulo intitulado ‘Enacting Boundaries’.
Em primeiro lugar, ressalto a conexão de processos políticos de demarcação de borders e como estas são promulgadas no cotidiano, seja pela aceitação das fronteiras negociadas politicamente ou também pela proliferação de boundaries. No livro, Summa (2021) analisa a produção de borders que cimentaram a etnicização espacial em território bósnio e, atualmente, ainda informam a conduta de pessoas comuns na espacialização de limites mais flexíveis, porosos e, muitas vezes, menos perceptíveis nos contextos urbanos das cidades de Sarajevo e Mostar. A autora nos revela o caso de uma escola elementar em Mostar, reunificada em 2004, com o propósito de servir como um ponto de encontro entre habitantes bósnios e croatas. Mesmo após a reunificação, a escola segue currículos distintos para educar bósnios e croatas, o que resulta na segmentação de estudantes bósnios e bósnios-croatas em diferentes salas de aula. Stavrevska (2016, p. 146) explora como a frase “duas escolas sob um mesmo telhado (dve škole pod jednim krovom)” tornou-se representativa das segregações cotidianas na Bósnia e Herzegovina. Esse exemplo de promulgação de boundaries evidencia que processos de boundary-making podem materializar violent boundaries, que são entendidas por Summa (2021, p. 43, tradução minha) como “tentativas de interromper, desconectar e restringir encontros, enquanto buscam alcançar alguma homogeneização de espaços, o que, levado ao extremo, pode resultar em práticas de ‘purificação’ do espaço e ‘limpeza étnica’. Assim, a violência é um aspecto importante dessas práticas de demarcação”.
A escola mencionada por Summa (2021) constitui um bom exemplo da relação entre processos políticos de larga escala e seus desdobramentos na vida da cidade, e serve como um indicativo de como os estudos de paz e conflito poderiam operacionalizar o conceito de cotidiano para análises que conectem essas dimensões. Isso responde a um apelo constante da literatura de paz e conflito direcionado aos teóricos da ‘virada local’ ou que trabalham com a noção de cotidiano, já que essa linha de pesquisa é muitas vezes criticada por descrever o cotidiano sob uma lente romantizada – contrastando o cotidiano em oposição ao jogo político e enquadrando-o como fonte de emancipação, autenticidade, independência e legitimidade (RANDAZZO, 2016). Ao explorar a conexão entre as divisões propostas no Acordo de Dayton e a reprodução de violent boundaries mais ou menos formalizadas no pós-guerra na Bósnia e Herzegovina, o livro de Summa (2021) se afasta de abordagens que espacializam a identidade local a partir de uma perspectiva emancipatória e desconectada do jogo político. Na verdade, o conceito de violent boundaries deixa em evidência como a agência local, no encontro com a espacialidade difundida através do Acordo de Dayton, também pode ser mobilizada para restringir encontros e segmentar sociedades após o fim formal da violência armada.
Porém, e em segundo lugar, ponto chave na argumentação do livro – e na trajetória de Summa (ver, por exemplo CARABELLI et al., 2019; SUMMA, 2019) – é o fato de que o cotidiano é heterogêneo e múltiplo, e as boundaries são necessariamente polissêmicas (SUMMA, 2021). Por isso, a autora também explora possibilidades alternativas de demarcação que não necessariamente acentuam a alteridade e promovem antagonismos nas cidades de Mostar e Sarajevo. Em Mostar, menciona-se o Café Aleska, cuja proprietária considera como político o fato de que o estabelecimento é aberto à diversidade étnica, em uma cidade dividida entre um Leste bósnio e um Oeste bósnio-croata. No caso de Sarajevo, boundaries alternativas são promulgadas em um salão de beleza, onde a proprietária explicitamente solicita que assuntos sobre etnonacionalidades sejam evitados para que todos se sintam acolhidos dentro de sua propriedade. O sucesso do salão, localizado próximo à Linha de Demarcação Inter-Entidades (IEBL, em inglês), faz com que pessoas ‘cruzem’ as demarcações que dividem o país entre a República Srpska e a Federação da Bósnia e Herzegovina (SUMMA, 2021).
A ênfase na multiplicidade do cotidiano é, por si só, uma estratégia analítica de extrema valia na medida em que contrasta visões convencionais da literatura crítica de que boundaries e borders são, necessariamente, práticas violentas de demarcação e alteridade. Essa proposição está em conformidade com os argumentos de Doreen Massey (2005), de que o grau de abertura ou rigidez de espaços não é a questão política fundamental, mas sim os termos sob os quais os graus de rigidez e abertura são negociados no cotidiano. Sendo assim, tanto em Massey (2005) como em Summa (2021), a demarcação não é necessariamente uma prática nociva. O Café Aleska em Mostar e o salão de beleza em Sarajevo são exemplos que deixam em evidência que práticas alternativas de demarcação de boundaries em Mostar e Sarajevo se colocam em oposição às demarcações violentas que seguem promovendo a etnicização do espaço nessas cidades. Nesse sentido, tais práticas alternativas se manifestam na forma de possibilidades espaciais que prezam pela justiça e restauração das relações interétnicas na Bósnia e Herzegovina.
Por fim, o sério engajamento da autora com as múltiplas formas de boundary-making no contexto pós-guerra chama atenção para a diversidade (e não-linearidade) espacial e temporal da vida cotidiana em cidades afetadas por conflitos armados. Ao passo que as demarcações violentas, como a divisão do currículo escolar, legitimam a etnicização dos espaços na Bósnia e Herzegovina, outras práticas de boundary-making (como o Café Aleska em Mostar e o salão de beleza em Sarajevo) deslocam as demarcações impostas no Acordo de Dayton e se colocam opostos a tal prática de demarcação. A produção desses espaços, como demonstrado por Summa (2021), também constitui um movimento não-linear no tempo, já que os responsáveis por tais lugares cotidianos buscam restaurar um passado pré-guerra no qual a afiliação étnica e religiosa não era um impedimento para a coexistência e encontros entre bósnios, bósnios-croatas e bósnios-sérvios no país. Sendo assim, a obra de Renata Summa abre espaço para promissoras pesquisas sobre a relação entre espaço-tempo em contextos de violência armada, bem como sobre a não-linearidade dos processos de transições de guerra para paz.
Referências
Carabelli, Giulia; Aleksandra Djurasovic; Renata Summa. Challenging the representation of ethnically divided cities: perspectives from Mostar. In: Space & Polity, Vol. 23, No. 2, 2019, pp. 116-124.
De Certeau, Michel. The Practice of Everyday Life. London: University of California, 1984.
Firchow, Pamina. Reclaiming Everyday Peace: Local Voices in Measurement and Evaluation After War. Cambridge: Cambridge University, 2018.
Lefbvre, Henri. The Production of Space. Oxford: Blackwell, 1991.
Leonardsson, Hanna; Rudd, Gustav. The “local turn” in peacebuilding: a literature review of effective and emancipatory local peacebuilding. In: Third World Quarterly, Vol. 36, No. 5, 2015, pp. 825-839.
Mac Ginty, Roger. Everyday Peace: How So-called Ordinary People Can Disrupt Violent Conflict. Oxford: Oxford University, 2021.
Mac Ginty, Roger; Richmond, Oliver P. The Local Turn in Peace Building: a critical agenda for peace. In: Third World Quarterly, Vol. 34, No. 4, 2013, pp. 763-783.
Massey, Doreen. For Space. London: Sage, 2005.
Randazzo, Elisa. The paradoxes of the ‘everyday’: scrutinising the local turn in peace building. In: Third World Quarterly, Vol. 37, No. 8, 2016, pp. 1351-1370.
Stavrevska, Elena. Space, Class and Peace: Spatial Governmentality in Post-War and Post-Socialist Bosnia and Herzegovina. In: Björkdahl, Annika; Buckley-Zistel, Susanne. Spatialising Peace and Conflict: Mapping the Production of Places, Sites and Scales of Violence. London: Palgrave Macmillan, 2016, pp. 141-158.
Summa, Renata. Inventing places: disrupting the `divided city’? In: Space & Polity,Vol. 23, No. 2, 2019, pp. 140-153.
Summa, Renata. Everyday Boundaries, Borders and Post Conflict Societies. Cham: Palgrave Macmillan, 2021.
* Matheus Souza é doutorando em Ciência Política, com ênfase em Paz e Conflito, pela Umeå University (Suécia). Possui Graduação e Mestrado em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). E-mail: matheus.souza@umu.se
[1] Algumas tentativas de teorizar o cotidiano podem ser encontradas em Firchow (2018) e Mac Ginty (2021), mas as proposições desses autores não engajam com a rica e vasta literatura da geografia sobre o cotidiano, que é trazida e explorada na obra de Renata Summa.
[2] Optou-se pela utilização dos termos em inglês já que a tradução literal nos leva para resultados semânticos idênticos – borders e boundaries como fronteiras – ou promove uma inconsistência teórica – borders como fronteiras internacionais, e boundaries como ‘limites’, sendo que, na obra, ‘limites’ são enquadrados como princípios legais (ver Summa 2021, pp. 31-2).
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