Foto de The Humantra, disponível em: https://www.pexels.com/pt-br/foto/preto-e-branco-p-b-cruzamento-travessia-13516203/. Acesso em 07 de maio de 2024.


Lembro de conversar com a Renata Summa sobre sua pesquisa quando ela terminava de escrever sua tese de doutorado. Eu era mestranda e vivia situação oposta: ainda tentava encontrar o tema da minha dissertação. Era algum momento de 2016. Para mim, era inspirador acompanhar o trabalho da Renata, do qual fui me aproximando pouco a pouco: estive em sua defesa de tese, assisti algumas de suas aulas e apresentações e agora leio o seu recém-lançado livro Everyday Boundaries, Borders and Post Conflict Societies. Não tenho dúvidas de que essas experiências influenciaram minhas próprias pesquisas. Trabalhamos com temas absolutamente distantes: eu me concentrei nas formas como a memória da colonização aparece (ou não) no porto do Rio de Janeiro quando das reformas urbanas para os Jogos Olímpiadas de 2016[1] e a Renata trata da Bósnia pós-Acordos de Paz de Dayton. Mas um modo, um registro, uma perspectiva, nos aproxima: o interesse pelo cotidiano.

Há quem descreva pesquisas sobre o cotidiano como estudos sobre o micro, sobre miudezas e aspectos quase imperceptíveis das relações sociais. Certamente, há algo disso em investigações que optam por encontrar saídas para suas inquietações nas frestas do dia a dia ou naquilo que vemos como a mais pura normalidade, o nosso marasmo rotineiro. Mas, no caso do livro da Renata Summa, outra questão se coloca de modo mais contundente. Ela mesmo nos diz na apresentação do livro: “Eu decidi não apenas ‘examinar os detalhes’, como também olhar para outros lugares, de modo a entender como fronteiras—que serão tratadas aqui como processos e como dependentes de concretização [enactment]–não são apenas produzidas e reproduzidas mas, principalmente, subvertidas e desestabilizadas”[2]. De modo mais amplo, ao lermos o livro da Renata, ouvimos ecoar uma inquietação: Afinal, onde acontece “o internacional”? Ela nos dá a pista: nos espaços cotidianos. Para entender, portanto, processos de construção, (re)afirmação e perturbação de fronteiras, é preciso olhar para práticas e espaços cotidianos. O que as pessoas fazem no seu dia a dia com as imposições e limitações desenhadas pelos acordos de Dayton? Esta é a pergunta central do trabalho da Renata. E não se trata de uma questão simples. Ao contrário, carrega consigo implicações metodológicas importantes e específicas. Neste breve texto, analisarei algumas delas a partir de um diálogo com o terceiro capítulo do livro de Summa, chamado “The Place(s) of Everyday and the Everyday Places” [O(s) lugare(s) do Cotidiano e os Lugares Cotidianos][3].

Quatro características são mais comumente associadas ao cotidiano. São elas: (1) a noção de que o cotidiano é tudo aquilo da ordem do senso comum, do mundano e do familiar; (2) a ideia que ele é composto por lugares e pessoas simples e envolve sempre práticas dos “mais fracos” ou das “margens”; (3) o cotidiano pensado como rotina e repetição; e (4) o cotidiano como algo da ordem do privado. Ou seja, independente da análise crítica, com frequência, o cotidiano é entendido como aquilo que pessoas “comuns” fazem em sua rotina diária. Existe, portanto, uma separação entre cotidiano e a dita “alta política”. Renata Summa recorre a leituras de Henri Lefebvre, Michel De Certeau e Cynthia Enloe para desfazer, uma a uma, estas concepções. Para Lefebvre[4], por exemplo, o cotidiano não é o espaço exclusivo das práticas corriqueiras de pessoas comuns, um lugar de repetição e alienação a priori. Ao contrário, trata-se de um espaço transversal, lugar de encontro de dicotomias, onde público e privado, exceção e rotina, articulam-se. Já De Certeau reforça a dimensão criativa do cotidiano e centra sua análise naquilo que as pessoas, afinal, fazem com os sistemas de governo, com as regras e normas de regulamentação do espaço e das relações sociais. “O cotidiano”, diz o autor, “se inventa com mil maneiras de caça não autorizada[5]. Ou seja, é no dia a dia que os ditos consumidores do espaço, a população que nele circula e vive, pode subverter relações de dominação, alterando as “maneiras de empregar os produtos impostos por uma ordem dominante”[6]. Por último, Enloe – assim como várias outras autoras feministas – questiona justamente a separação entre público e privado e destaca a interligação entre estas duas esferas da vida.

Renata Summa, então, nos dá a sua concepção de cotidiano: para a autora, o dia a dia não deve ser visto como um lugar específico, fechado, mas como um espaço onde distinções usadas para definir o que importa e o que não importa politicamente são, por um lado, performadas e, por outro, perturbadas. Neste sentido, Renata Summa está mais interessada em identificar práticas e disputas que dão forma à vida cotidiana do que encontrar uma definição precisa e concisa para encerrá-la teoricamente. O cotidiano é, portanto, um lugar poroso, heterogêneo, espaço de conexão e embaralhamento entre diferentes esferas da vida: rotina e exceção, público e privado, elite e “pessoas comuns” e, exatamente por isso é “a categoria que permite questionar essa forma dicotômica de entender como a política, ou a política internacional, funciona”[7]. Mas como transpor em palavras esta heterogeneidade própria ao cotidiano?

Alguns encontros marcaram a minha pesquisa na zona portuária do Rio de Janeiro, durante o mestrado, em 2017. Um deles foi particularmente significativo. Entre os espaços que me propus a analisar, estava o Instituto Pretos Novos (IPN), fundado por Merced Guimarães, moradora do bairro da Gamboa, que encontrou ossadas humanas durante a reforma de sua casa, um antigo sobrado próximo à Praça da Harmonia. Foi assim, durante uma obra domiciliar, que o cemitério dos pretos novos – onde escravizados que chegavam já mortos ou muito fracos ao Rio de Janeiro eram enterrados a céu aberto durante os séculos XVIII e XIX – ressurgiu, em 1995, no centro do Rio. O IPN é, certamente, um espaço de resistência e contra-memória e, talvez por isso, esperava de sua fundadora um discurso claro e contundente contra o governo de Eduardo Paes, que liderou as reformas olímpicas na zona portuária. Mas durante uma de nossas conversas, ela contava sobre a dificuldade em manter o Instituto e sobre como o então novo prefeito da cidade – à época Marcelo Crivella – havia cortado toda a ajuda financeira que o IPN recebia da antiga prefeitura. Ela então passou a elogiar o governo Paes, cujo modelo de cidade foi responsável por centenas de remoções e ampla conivência com políticas de segurança estatais que afetaram a vida do mesmo povo negro cuja memória o IPN luta para preservar. Nada é simples e alianças insuspeitas podem surgir quando o que está em jogo é a sobrevivência daquilo que consideramos nossos maiores bens e legados. Aquele encontro me fez refletir sobre as preconcepções que estava levando para o campo e para escrita e me mostrou exemplarmente que a vida é muito mais nebulosa do que gostaríamos de admitir.

Acredito que Renata Summa foi mais feliz ao lidar com as zonas cinzentas de sua pesquisa. Habilmente costurou a partir de suas próprias escolhas metodológicas um retrato da ambiguidade, da complexidade inerente à vida cotidiana. Dois métodos têm sido amplamente usados em pesquisas sobre o cotidiano: o caminhar e a etnografia. Apesar de ter andado quilômetros e quilômetros pelas cidades de Mostar e Saravejo e ter passado três períodos de imersão nestas cidades fazendo pesquisa e entrevistando mais de 40 pessoas, o trabalho da Renata não é uma flânerie ou uma deriva por estes dois centros urbanos e tampouco é uma etnografia. De maneira criativa, Renata combina diferentes estratégias metodológicas. Citarei algumas. Primeiro, usa sua sensação de deslocamento como tática. Ao contrário da maioria dos pesquisadores de Bósnia, Renata não centra sua análise no período da guerra, mas no contemporâneo, e atenta àquilo que é visto como rotineiro ao invés de exceções ou de experiências nas quais mais facilmente identificamos o conflito. Além disso, o fato de ser brasileira gerava curiosidade entre seus interlocutores: o que faz alguém vir de tão longe para um lugar tão pequeno, com uma língua que – apesar de conhecer – não domina fluentemente? O estranhamento, nos conta a autora, atuou muitas vezes para aproximá-la de seus entrevistados.

A esta tática, acrescentou a ideia de “snippets”, que aqui vou traduzir livremente como “fragmentos”: relatos mais curtos de encontros não apenas entre pesquisadora e o cotidiano de determinados lugares ou pessoas, mas também das próprias percepções que as pessoas têm de sua vida cotidiana. Claro, os encontros são mediados pela pesquisadora, que os seleciona, reúne e interpreta. Acredito que esta segunda escolha metodológica talvez seja a maior responsável pela maneira como Renata lida com a própria fragmentariedade do cotidiano. Diante de um amplo e heterogêneo material de pesquisa (que inclui entrevistas, romances e poemas escritos por bósnios vivendo no país ou fora dele, documentários, mapas e documentos oficiais), a autora faz uso de uma escrita e uma abordagem fragmentárias que revela a multiplicidade de vozes e práticas que moldam a vida cotidiana. Sugiro que pensemos este método de modo similar ao mecanismo de uma câmera fotográfica. Aqui também temos registros de instantes específicos, de fragmentos, remontados pela Renata de modo a revelar uma história outra de como decisões tomadas durante um acordo de paz, por uma alta cúpula de autoridades políticas, articula-se no dia a dia de uma sociedade pós-conflito.

Mas diante desta amplitude, uma questão se coloca: como evitar que o cotidiano se torne uma categoria tão aberta e múltipla que seja impossível analisá-la? Com isto em mente, Renata Summa chegou à ideia de “espaços cotidianos”: pontos de referência a partir de onde a autora pode capturar diferentes formas de mobilização de fronteiras na Bósnia pós-Dayton e espaços exemplares para mostrar esta mistura de esferas distintas própria ao cotidiano. São eles: uma estação de ônibus, uma avenida e uma praça, um café e um shopping.

A escolha de um tema de pesquisa, a formação de um corpus de análise e as estratégias metodológicas nunca são neutras e os objetivos da pesquisadora influenciam em cada uma destas etapas. Mas nenhuma destas decisões deve ser feita de modo a apenas ilustrar aquilo que a priori já se tem como pistas para a hipótese levantada pela pesquisa; elas não devem ser meras reafirmações de intuições da pesquisadora. E Renata Summa nos mostra isso primorosamente a partir da definição da sua metodologia. As abordagens escolhidas permitiram movimentar a investigação, suscitar articulações entre diferentes maneiras de mobilizar fronteiras e – suspeito – também levou a ideias novas e imprevistas. Muitas vezes encarada como a etapa mais difícil de um trabalho de pesquisa (e talvez por isso mesmo), a metodologia acaba relegada a uma etapa quase esquecida, muitas vezes entendida como consequência natural do marco teórico mobilizado pela pesquisadora. Renata revela um caminho oposto. A escolha pela lente do cotidiano e suas subsequentes decisões metodológicas trazem uma importante implicação teórica: ao mostrar como o internacional acontece e é (re)produzido no dia a dia, Renata Summa desestabiliza a dicotomia entre local e internacional e nos dá um caminho para construir leituras que levem em conta tanto a fluidez como a complexidade das relações internacionais. Fluidez porque elas não ocorrem no modelo fechado de diferentes esferas de poder. Complexidade porque local e internacional tornam-se, com frequência, indiscerníveis, pelo olhar atento que Renata nos convida a assumir.

* Luciana Martinez é doutoranda do Programa de Doutoramento em Pós-Colonialismos e Cidadania Global do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e bolsista da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (Portugal). Mestre em Relações Internacionais pela PUC-Rio. Nos últimos anos, tem pesquisado a memória do colonialismo português em Portugal e no Brasil atuais a partir da análise de objetos culturais. E-mail: lucianatmartinez@gmail.com | Currículo Lattes


[1] MARTINEZ, Luciana Teixeira; FERNÁNDEZ, Marta (Orientadora); GOMES, Maíra Siman (Co-orientadora). O dia que o passado surgiu no horizonte do país do futuro: tempos e espaços pós-coloniais no porto do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2018, 137p. Dissertação de Mestrado – Instituto de Relações Internacionais, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/36360/36360.PDF

[2] SUMMA, Renata. Everyday Boundaries, Borders and Post Conflict Societies. Cham, Switzerland: Palgrave Macmillan, 2021, p. 6, tradução livre. No original: “I decided not only to ‘examine the details’, but to look elsewhere, in order to understand how boundaries—which will be treated here as a process and dependent on enactments—are not only produced and reproduced, but, especially, subverted and destabilized”.

[3] SUMMA, Renata. Everyday Boundaries, Borders and Post Conflict Societies. Cham, Switzerland: Palgrave Macmillan, 2021, pp. 55-96.

[4] LEFEBVRE, Henri. “Reflections on the Politics of Space”. In: Brenner, Neil; Elden, Stuart (eds.). State, Space, World: Selected Essays. Minneapolis and London: University of Minnesota Press, 2009a, pp. 167-184. LEFEBVRE, Henri. “Space: Social Product and Use Value”. In: Brenner, Neil; Elden, Stuart (eds.). State, Space, World: Selected Essays. Minneapolis and London: University of Minnesota Press, 2009b, pp. 185-195.

[5] DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano 1: Artes de fazer. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2014, p. 38, grifo original.

[6] DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano 1: Artes de fazer. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2014, p. 39, grifo original.

[7] SUMMA, Renata. Everyday Boundaries, Borders and Post Conflict Societies. Cham, Switzerland: Palgrave Macmillan, 2021, p. 70, tradução livre. No original: “the category which allows for questioning this dichotomous way of understanding how politics, or international politics, work”.